Deus?
A palavra ‘Deus’ é pronunciada, mas Deus mesmo é esquecido
Tânia da Silva Mayer*
Das percepções que compartilho com companheiros e companheiras de caminho, uma me impressiona pela força que apresenta e que me remete aos tempos de estudos da teologia: o uso do nome, da palavra “Deus”. A grosso modo, o nome de Deus é santificado quando reconhecemos nesse mesmo nome a presença daquele que é o doador e o cuidador da vida. As Sagradas Escrituras cristãs, as quais dedicamos especial atenção ao longo do mês de setembro, não se limitam em narrativas, poesias, orações, entre outros gêneros, que manifestam um Deus atento e preocupado com seu povo, desejoso por estreitar laços e relações com cada pessoa que recebe e aceita sua amizade. As Escrituras são fruto dessa mesma experiência de Deus, experiência pessoal e coletiva, diga-se de passagem. Por isso, o nome de Deus sempre é evocado com um sentido relacional, e ressoa da boca de quem espera ser respondido com proximidade.
Apesar dessa leitura da fé, pode ocorrer que essa mesma presença não seja reconhecida e acabe condicionada ao esquecimento. Notem bem, não se trata apenas do esquecimento do qual uma mente sobrecarregada se ocupa, mas do esquecimento do esquecimento, que é mais precisamente um fechamento e recusa à relação com o Deus revelado por Jesus, governador de um Reino doado às criaturas. Nesse sentido, Deus deixa de fazer sentido, ou melhor, deixa de ser o sentido da vida, mesmo daquelas pessoas que pronunciam esse nome no vazio de si mesmas e de suas crenças.
Posto isso, é imprescindível reconhecer que em nossos tempos a palavra “Deus” esteja sendo bastante pronunciada e em diferentes contextos. Desde altares e púlpitos até trios elétricos em comícios políticos ou plenárias de câmaras e assembleias. O pulular dessa palavra pode oferecer a falsa impressão de que estejamos recordando mais de Deus e de que estejamos nos relacionando com ele com amizade, tal como manifestam as Sagradas Escrituras. Mas como vimos acima, pronunciar essa palavra não significa que não caímos no esquecimento do esquecimento de Deus. Precisamente porque essa mesma palavra pode estar sendo pronunciada num vão, sem sentido algum e, inclusive, como recusa objetiva da relação de amizade que Deus mesmo nos propõe.
Desse modo, queremos dizer que não somos mais ou menos cristãos ou mais ou menos crentes quando o nome de Deus é pronunciado por nossas bocas. Mateus destacou essa compreensão em seu evangelho: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino do Céu” (Mt 7,21). Jesus já advertia aos que o seguiam que não basta pronunciar com a boca o seu senhorio, reconhecendo sua messianidade e condição divina. Juntamente com essa confissão, que pode ser feita apenas como observação ou como profissão de fé, é imprescindível também que as ações estejam em conformidade com a fé expressa em palavras. De outro modo, trata-se de professar a fé com palavras e com a própria vida.
Assim, como podemos compreender, ainda que o nome de Deus esteja pululando na boca de muitas pessoas nesse tempo em que vivemos, esse dado não é um indicativo de nos lembrarmos mais do Deus que se manifestou definitivamente a nós em Jesus e também não significa que tenhamos tomado parte na amizade com ele. O “deus” que é falado por diferentes vozes só se refere ao Deus de Jesus quando as atitudes cotidianas dessa mesma pessoa que O pronuncia falam de Jesus Cristo, do Reino, quando o evangelho é assumido como narrativa própria da vida. Portanto, só se diz bem ou só se bendiz o nome de Deus quem faz das palavras e dos gestos o ecoar dessa mesma palavra santa.
*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com
Fonte: Dom Total