Sob medo e desconfiança, população de Cabul tenta voltar à normalidade
EUA é alvo de críticas de aliados e ONU pede atenção para nova onda de refugiados
Depois de dois dias caóticos, com a tomada de Cabul pelo Talibã e a tentativa desesperada de fuga de milhares de afegão que tomaramo aeroporto da capital, moradores da cidade tentam retomar alguma normalidade. O cenário é de grande temor e desconfiança dos afegãos a respeito do novo regime talibã, horas depois de o presidente Joe Biden defender com veemência a retirada das tropas dos Estados Unidos.
As lojas reabriram as portas na capital do Afeganistão, o tráfego retornou, e as pessoas voltaram às ruas, enquanto os talibãs monitoram tudo em postos de vigilância. Poucas mulheres se arriscaram a sair de casa.
Alguns sinais mostram que a vida não será igual. Os homens trocaram suas roupas ocidentais pelo shalwar kameez – a vestimenta tradicional afegã -, e a televisão estatal exibe agora, principalmente, programas islâmicos.
Os talibãs intensificaram os gestos de apaziguamento para a população desde que entraram em Cabul no domingo (15), após uma ofensiva relâmpago. Em apenas dez dias, eles assumiram o controle de quase todo país, incluindo o palácio presidencial, abandonado por Ashraf Ghani, que fugiu para o exterior.
Nesta terça-feira, os insurgentes anunciaram uma “anistia geral” para todos os funcionários públicos, que receberam o pedido para “retomar sua vida cotidiana com total confiança”.
Memória trágica de repressão
Para muitos afegãos, no entanto, será difícil ter confiança. Quando governaram o Afeganistão, entre 1996 e 2001, os talibãs adotaram uma versão extremamente rigorosa da lei islâmica. As mulheres não podiam trabalhar, nem estudar. Os acusados de roubo e de assassinato enfrentavam punições terríveis.
“As pessoas têm medo do desconhecido. Os talibãs patrulham a cidade em pequenos comboios. Não incomodam ninguém, mas com certeza as pessoas estão com medo”, disse um comerciante em Cabul.
Apesar das mensagens dos talibãs, algumas informações sugerem que eles continuam procurando autoridades governamentais. Uma testemunha relatou que homens invadiram a casa de um funcionário, que foi levado à força.
“O medo que tomou conta de grande parte da população é profundo e, levando-se em consideração o passado, totalmente compreensível”, disse o porta-voz do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, Rupert Colville.
Voos de retirada
Em um discurso muito aguardado, Joe Biden defendeu a retirada das tropas americanas do Afeganistão, onde os militares entraram há 20 anos para expulsar os talibãs do poder. “Estou profundamente entristecido com os acontecimentos, mas não me arrependo da decisão” afirmou.
O presidente americano repetiu que a missão de Washington nunca foi construir uma nação democrática em um país instável, e sim “impedir um ataque terrorista em território americano”.
O governo dos Estados Unidos decidiu intervir no Afeganistão em 2001, após a recusa dos talibãs de entregarem o líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, depois dos atentados do 11 de Setembro.
“As tropas americanas não podem, nem devem lutar e morrer em uma guerra que as forças afegãs não estão dispostas a lutar por si mesmas”, disse Biden, antes de reconhecer que o governo afegão caiu “mais rápido” que o previsto.
O triunfo dos talibãs provocou cenas de pânico e de caos no aeroporto de Cabul na segunda-feira (16), para onde milhares de pessoas correram desesperadas, em uma tentativa de fugir do país. Imagens que o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, chamou nesta terça de “vergonha para o Ocidente”.
Afegãos tentam deixar o país a qualquer custo com medo da repressão (Wakil Kohsar/AFP)
Vídeos nas redes sociais mostram centenas de pessoas correndo ao lado de um avião militar americano a ponto de decolar, enquanto alguns agarravam a lateral, ou as rodas da aeronave.
O governo dos Estados Unidos enviou 6 mil soldados para garantir a segurança do aeroporto e a retirada de quase 30 mil americanos e colaboradores civis afegãos. Espanha, Alemanha, França, Holanda, Reino Unido e outros países tentavam acelerar nesta terça-feira a repatriação de seus cidadãos. Biden ameaçou os talibãs com uma resposta militar “rápida e contundente”, caso interrompam as operações de retirada.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) pediu que os países proíbam as expulsões de cidadãos afegãos para seu país de origem, inclusive daqueles que tiveram o pedido de asilo previamente rejeitado.
Ao mesmo tempo, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos pediu à comunidade internacional que ofereça todo apoio aos afegãos que enfrentam “risco iminente” em seu país, sob o novo regime talibã.
“Devido à rápida deterioração da situação em termos de segurança e de direitos humanos em grandes partes do país, além da situação de emergência humanitária, o Acnur pede aos Estados que acabem com os retornos forçados de cidadãos afegãos, mesmo que tenha sido previamente determinado que eles não requerem proteção internacional”, declarou a porta-voz Shabia Mantoo durante entrevista coletiva em Genebra. “Desde o início do ano, mais de 550mil afegãos foram deslocados dentro do país, devido ao conflito e à insegurança”, destacou Mantoo.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) calcula que mais de 18 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária no Afeganistão, incluindo 10 milhões de crianças. “O Unicef precisa de acesso a todas estas pessoas e obter garantias em termos de segurança para os trabalhadores humanitários”, afirmou o diretor de operações do Fundo no Afeganistão, Mustapha Ben Messaoud.
Imagem abalada
A reação da comunidade internacional ainda deve ser observada. Washington anunciou que apenas reconhecerá um governo talibã no Afeganistão se este respeitar os direitos das mulheres e adotar um distanciamento de movimentos extremistas como a Al-Qaeda. A Alemanha anunciou a suspensão da ajuda ao desenvolvimento para o Afeganistão.
A China foi o primeiro país a anunciar, ainda na segunda-feira, declarando que deseja manter “relações amistosas” com os talibãs. Rússia e Irã também fizeram gestos de abertura. A Turquia elogiou o que chamou de “mensagens positivas” dos talibãs.
Nesta terça, em reação mais contundente, a China acusou o governo americano de “deixar um caos terrível” no Afeganistão. A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Hua Chunying, disse que Washington deixou “um caos terrível de distúrbios, divisão e famílias desfeitas” no Afeganistão. “A força e o papel dos Estados Unidos é a destruição e não a construção”, enfatizou Hua. A China criticou repetidamente a apressada retirada dos Estados Unidos do Afeganistão, que considera um fracasso de liderança.
Washington – que registrou 2,5 mil mortes e uma conta de mais de US$ 2 trilhões com a guerra no Afeganistão – sai com a imagem profundamente abalada e recebeu fortes críticas de seus aliados europeus.
A ministra alemã da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer, pediu à Organização do Tratado do Atlântico Norte que aprenda a lição do fracasso no Afeganistão. A Otan fará uma reunião de emergência nesta terça-feira.
O ministro britânico da Defesa, Ben Wallace, citou o “fracasso da comunidade internacional”, enquanto a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, disse que a intervenção no Afeganistão “não foi tão frutífera” como se esperava.
O presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que o Afeganistão “não deve voltar a ser o santuário do terrorismo que já foi” e pediu uma “resposta (internacional) responsável e unida”.
O governo do Reino Unido informou que o primeiro-ministro Boris Johnson conversou com a chanceler da Alemanha, Angela Merkel. No telefonema, a dupla coincidiu sobre a importância da cooperação global, tanto na “necessidade urgente” de retirar estrangeiros “e outros” do Afeganistão, bem como na importância de mais longo prazo de se evitar uma crise humanitária no país e na região.
“O primeiro-ministro também ressaltou a necessidade de concordar sobre padrões internacionais compartilhados sobre direitos humanos que qualquer governo futuro do Talibã no Afeganistão terá de manter frente à comunidade internacional”, aponta o texto. Johnson ainda disse que pretende convocar líderes do G-7 a um encontro virtual para discutir a questão “na primeira oportunidade”.
Para muitos analistas, porém, embora os talibãs tentem apresentar mais prudência em suas relações com a Al-Qaeda, os dois grupos continuam estreitamente vinculados. “O que está acontecendo no Afeganistão é uma vitória clara e veemente para a Al-Qaeda”, avalia o diretor de pesquisas do “think tank” Soufan Center, Colin Clarke, para quem o grupo pode aproveitar para atrair recrutas e criar uma nova dinâmica.
Fonte: AFP/Agência Estado/Dom Total