Como estão os cristãos que o papa encontrará no Iraque?
Casas espoliadas são símbolo das tensões no país em que se espera uma ‘mensagem forte’ do pontífice.
Igrejas destruídas, becos invadidos pelo lixo e estigmas da guerra. Nos escombros de Mossul, Karamlech e Qaraqosh, onde os jihadistas tentaram apagar qualquer presença cristã, o arcebispo Najeeb Michaeel quer, apesar de tudo, receber o papa Francisco “com alegria” no início de março.
Os três anos de ocupação do grupo do Estado Islâmico (EI) deixaram sua marca: uma cruz quebrada na torre de uma igreja, um cálice danificado, o ícone exposto em uma caixa de vidro… Estas são provas guardadas para “superar o passado”, “perdoando, mas sem esquecer”, disse o arcebispo caldeu católico de Mossul e Aqra. Ele mesmo salvou manuscritos antigos das garras do EI, no que foi seu feudo no Iraque, no norte do país, levando-os para o Curdistão, à noite, por estradas precárias e difíceis.
Desde que foi anunciada a primeira visita de um papa ao Iraque, a carga de trabalho deste prelado com um sorriso jovial aumentou, conta ele, da Arquidiocese de Karamlech. Em todas as cidades, por onde passará o chefe de 1,3 bilhão de católicos do mundo, corais ensaiam há semanas. Em todas as igrejas, eles imaginam o dia em que poderão se aproximar do sucessor de Pedro. Os padres se preparam para traduzir as missas para o italiano, latim, árabe e aramaico, já que o papa pronunciará no Iraque sua primeira missa de rito oriental – com rituais, cantos e uma língua litúrgica diferentes.
Foram criadas comissões de funcionários públicos para lidar com a logística e o protocolo.
Para o arcebispo Michaeel, a tarefa é ainda mais delicada, já que há mais de cinco anos nenhuma personalidade de governo estrangeiro põe os pés em Mossul. “Temos uma pressão enorme: o santo padre não é uma personalidade comum, é o representante de um Estado e dos católicos do mundo”, afirma o prelado de 65 anos. Uma personalidade que se desloca em um veículo aberto em um país onde a insegurança espreita e um homem de 84 anos que não poderá vagar pelos escombros, ou pelas vielas íngremes da velha Mossul.
Recompor laços
Nesta província, que tem “14 igrejas destruídas, das quais sete remontam aos séculos V, VI e VII”, não há catedral, nem mesmo um estádio para abrigar a missa papal, reconhece o arcebispo na antiga Mossul, onde nasceu, destruída pela guerra contra os jihadistas em 2017. A Catedral de Miskinta, “mártir” dos primeiros séculos, à qual ele ia em família quando era criança, está repleta de escombros. Na igreja de San Simeón, há sacos de areia e lixo…
Em um país onde os jihadistas permanecem escondidos, “todos os responsáveis pela segurança vão ficar muito preocupados”, reconhece o arcebispo, um ex-engenheiro de perfuração de petróleo que abandonou uma vida muito confortável para responder à sua vocação. A viagem de três dias do papa “é muito importante para todos os iraquianos”, diz ele. “Este país é um mosaico de mil cores, que aguenta apenas se todos os elementos se reunirem.
Não se pode separar, como é o caso hoje”, lamenta.
O papa pode recompor esses laços, particularmente no norte, onde vivem dezenas de comunidades, com uma “mensagem forte” que mostrará sua “bênção” e seu “apoio moral” em um país onde as diferenças confessionais e étnicas continuam latentes – embora “as mentalidades mudem”, garante o arcebispo. Este aspecto ecumênico está no centro da viagem papal com uma etapa em Ur, cidade do sul do Iraque onde nasceu o patriarca Abraão, “pai” de todos os monoteísmos.
O papa Francisco prometeu rezar com muçulmanos e cristãos, assim como com yazidis e sabeus, duas religiões nascidas no Iraque muito antes da cristandade. Para o arcebispo Michaeel, “o mais importante é que a alegria entre no coração de todos, já que não é uma simples visita protocolar, é um momento espiritual”.
O arcebispo caldeu católico de Mossul, Najeeb Michaeel, prepara-se para a visita do papa Francisco ao Iraque, em março (Safin Hamed/AFP)Casas espoliadas dos cristãos, um símbolo das tensões no Iraque
Muitos cristãos que foram ameaçados ou que tiveram medo durante a guerra fugiram do Iraque, deixando para trás casas que foram saqueadas por milicianos ou vizinhos inescrupulosos. E para muitos, recuperá-las é uma batalha perdida de antemão. “Acabei vendendo pelo preço que me ofereceram”, diz Fawzi Boulos, sobre sua casa de quase 350m2 em uma avenida elegante de Bagdá, onde não põe os pés desde 2007.
Naquela época, quando a violência religiosa estava em seu auge na capital, este veterinário decidiu ir embora.
Uma vez no Curdistão, soube que alguns homens a ocuparam. Nos anos seguintes, após retornar à capital iraquiana, recebeu ameaças de morte todas as vezes que tentou se aproximar de sua casa.
Contratou um advogado por US$ 15 mil, recorreu ao comando militar e até pediu ajuda ao primeiro-ministro da época. Mas não adiantou. Entre os custos da justiça, subornos a supostos mediadores, ele estima que tenha gastado o que os ocupantes concordaram em pagar por sua casa: US$ 400 mil, bem abaixo do mercado em Bagdá, onde as casas são vendidas por mais que o dobro.
Nem partido nem tribo
William Warda, que criou a ONG Hammurabi para defender as minorias, levou dezenas de casos como este à justiça, dossiês que a reportagem consultou. E a história se repete: os donos ou parentes que cuidavam das casas viram homens ameaçadores aparecerem do nada – muitas vezes armados – para expulsá-los.
Em voz baixa, muitos proprietários – sejam eles membros da minoria cristã ou muçulmanos que sofreram a guerra civil ou expurgos de membros do regime deposto de Saddam Hussein – acusam grupos armados de estarem envolvidos. Essas facções são atualmente poderosos batalhões xiitas, muitas vezes pró-Irã, que controlam o Parlamento e vários ministérios. Diante deles, os cristãos se sentem desarmados.
“Os muçulmanos podem recorrer a partidos políticos ou tribos para defendê-los, nós não podemos”, diz o padre grego-ortodoxo Yunan al-Farid. No Parlamento, um sistema de cotas impõe a presença de cinco deputados cristãos. Mas em um sistema de listas, defendem mais os interesses partidários do que os interesses da comunidade.
Hectares roubados
Em 2008, o Estado criou uma Comissão encarregada de expulsar os ocupantes. Na época, o país estava tentando superar a guerra civil e inúmeras disputas entre xiitas e sunitas foram resolvidas dessa forma. Ao todo, a Comissão de quatro membros encarregada de Bagdá e seus 10 milhões de habitantes devolveu mais de 26.500 casas aos seus proprietários. Mas no caso específico dos cristãos, menos propensos a recorrer à justiça e que muitas vezes se deslocaram para o exterior, foram expulsos os ocupantes de apenas 50 casas, segundo a Comissão, que não comunica o número de denúncias recebidas.
Na província de Nínive, no norte, onde o grupo Estado Islâmico (EI) se instalou em 2014, muitas facções armadas nascidas da luta anti-jihadista proibiram o acesso às suas terras agrícolas aos proprietários cristãos. Washington até sancionou vários líderes milicianos – incluindo um cristão – por ocuparem terras de cidades inteiras.
Afinal, quantas casas de cristãos foram espoliadas no total? “Muitas pessoas forçaram as portas ou alteraram as escrituras, mas não há dados disponíveis”, conta o padre Farid. Porém, como vê regularmente as famílias, ousa fazer um prognóstico: “20% dos casos estão resolvidos”. Os proprietários precisam tornar isso conhecido, diz o chefe da Comissão Anti-Ocupação, o general Mudhir al Mula.
À mercê
São as famílias que devem juntar a documentação original, e ele se encarrega de desvendar os papéis falsos criados pelos ocupantes e, em seguida, mobilizar soldados e policiais para expulsá-los. Mas é o peixe que morde o rabo, afirma Warda, da ONG Hammurabi. “Os juízes só podem agir quando se recorre à justiça”.
Em um dos países mais corruptos do mundo, cristãos e muçulmanos repetem ad nauseam que é inútil denunciar, principalmente contra os milicianos. E é que embora a justiça tenha dado a razão às famílias cristãs, “as forças de ordem nunca a executam”, diz Warda.
Um homem cobrou recentemente mudanças: o ex-chefe de milícia Moqtada Sadr, terror dos americanos e das minorias durante os anos 2000. Com o anúncio da visita do papa, no início de março, o líder do primeiro bloco parlamentar – e de milhares de paramilitares – pediu publicamente que as casas fossem devolvidas aos cristãos. Mas tanto cristãos quanto oficiais afirmam unanimemente que a maioria dos ocupantes são precisamente ‘sadristas’.
“Ele só tem que mandar seus homens saírem de nossas casas em vez de fazer este tipo de anúncio (…) meramente oportunista com a visita do papa”, reclamou um cristão aborrecido. “Não temos lei ou instituição que garanta a cidadania de todos”, afirma Warda. “E enquanto este for o caso, os cristãos dependerão do que o príncipe quiser.”
Fonte: AFP/Dom Total
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