Biden suspende muro de Trump. E o papa, o que achou?
Como o segundo presidente católico da história dos EUA corresponderá aos apelos do atual pontífice?
Fui alvo de haters nas redes sociais, ao anunciar algo muito simples: o novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, é católico – o segundo na história do país, após John F. Kennedy. Como podemos ver, dizer o óbvio, de maneira objetiva, e sem tomar partido, não impede que uma avalanche de categorizações recaia sobre nós. Na era das redes sociais, essa mania doentia de “partidarizar” os discursos é o fim da picada. E a imprensa, no meio disso tudo, tem penado.
O atual mandatário norte-americano é batizado, crismado, se confessa e vai à missa aos domingos. Por outro lado, em âmbito político, é pro-choice em relação ao aborto, embora tenha declarado, em entrevista, ser pessoalmente contra a prática.
“Estou preparado para aceitar que a concepção é o momento do chamado a uma vida humana. Mas não estou preparado para dizer isso a outras pessoas tementes a Deus e não tementes a Deus”, disse.
E é esse posicionamento “duplo” que tem dividido os bispos americanos. Os prelados têm quebrado a cabeça em relação à maneira de lidar com o novo governo, comandado pelos democratas.
A questão é a seguinte: se Joe Biden e Donald Trump passarem pelo crivo da concepção católica de defesa da vida, nenhum poderá atribuir para si, em teoria, o título de embaixador da causa. Lembrando que o ex-presidente defendia, abertamente, a realização do aborto em três casos: estupro, incesto e proteção da vida da mãe. Para os católicos, nem nessas situações-limite deve ocorrer a interrupção da gravidez.
É importante frisar que a Igreja defende a vida da concepção à morte natural. Porém, alguns grupos pró-vida, ao condenarem o papa Francisco por sair em defesa dos marginalizados, contradizem esse princípio. Na verdade, o chefe da Igreja Católica simplesmente segue à risca o que a instituição que ele governa ensina há muito tempo. Problema seria se ele fizesse o contrário.
Como o objetivo do artigo não é medir o nível de catolicismo de Biden, nem adentrar em temas relacionados à moral católica, tratarei de explicar, de maneira resumida, como Roma poderá estabelecer uma relação estratégica com a Casa Branca – pelo bem de todos.
Algumas das pautas defendidas pelo líder do país mais poderoso do mundo, ao menos até o momento, condizem com muitas daquelas que são caras ao pontífice.
Um dia após ser empossado, Biden suspendeu a construção do muro entre os Estados Unidos e o México, um dos grandes carros-chefe da campanha de Trump. Um sinal positivo para o Vaticano.
Mesmo que os dois Estados entrem em desacordo a respeito de algumas questões inegociáveis para o catolicismo, pode ser que Biden esteja disposto, ao menos, a escutar o papa Francisco.
Após quatro anos de curtos-circuitos diplomáticos entre os norte-americanos e Santa Sé, já se fala, nos corredores dos sagrados palácios, que agora é possível, pelo menos, dialogar. Outro trunfo, no meio dessa história, é que Biden é um defensor da causa ambiental, algo que pode contribuir, ainda mais, com essa “recostura” diplomática.
Poucas horas depois de tomar posse, na última quarta-feira, o novo presidente estadunidense recolocou o país no Acordo de Paris, um pacto defendido amplamente pelo papa Francisco.
Não é segredo para ninguém que o papa atual é bastante articulado e tem atuado como um ótimo mediador de conflitos. A Síria, país com o qual o Francisco está bastante preocupado, e cuja responsabilidade pela destruição também vai para a conta dos Estados Unidos, poderá, finalmente, contemplar o fim da guerra? As políticas anti-imigração serão, realmente, rechaçadas pela gestão Biden-Harris? Há um empenho real para acabar com o racismo estrutural? Biden, que se assume católico, seguirá as recomendações do líder da religião que professa?
Por enquanto, é impossível traçar esse quadro.
Mas é certo que Biden, que nunca escondeu sua admiração pelo pontífice atual, não vê a hora de ir a Roma para ajustar os pormenores dessa relação. Em se tratando do papa Francisco, essa aproximação pode ser de grande valia. O pontífice, que insiste na adoção de um cessar-fogo global, sobretudo neste período de pandemia, poderá colher bons frutos desse pacto.
As primeiras investidas de Biden podem ser, sim, uma grande jogada de marketing – como a foto do papa Francisco posta em uma das estantes do salão oval –, mas também pode ser uma postura baseada na experiência cristã que o precede. Nunca se sabe.
Ele chegou a dizer, numa entrevista publicada em 2015, pela revista America Magazine, dos jesuítas, que “o papa é a personificação da doutrina social católica com a qual foi criado”.
“Fui educado com a ideia de que todos têm direito à dignidade, que os pobres devem ter preferência especial, que você tem a obrigação de estender a mão e ser inclusivo”, completou.
*Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras
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