Espiritualidade pós-moderna
A crise da modernidade favorece uma espiritualidade adaptada às necessidades psicossociais de evasão, da falta de sentido, de fuga da realidade conflitiva.
Engolida pelo vácuo pós-moderno, a religião tende a reduzir-se à esfera do privado (Unsplash/ Ismael Paramo)
O que caracteriza os tempos pós-modernos em que vivemos, segundo o filósofo Jean-François Lyotard, é a falta de resposta para a questão do sentido da existência.
Por enquanto, estamos na zona nebulosa da terceira margem do rio.
A modernidade agoniza, solapada por esse buraco aberto no centro do coração pela cultura da abundância.
Nunca a felicidade foi tão insistentemente ofertada. Está ao alcance da mão, ali na prateleira, na loja da esquina, publicitada em todo tipo de mercadorias.
No entanto, a alma se dilacera, seja pela frustração de não dispor de meios para alcançá-la; seja por angariar os produtos do fascinante mundo do consumismo e descobrir que, ainda assim, o espírito não se sacia…
A publicidade repete incessantemente que todos temos a obrigação de ser felizes, de vencer, de se destacar do comum dos mortais.
Se não conseguem, sobre esses recai o sentimento de culpa por seu fracasso. Resta-lhes, porém, uma esperança: o caráter miraculoso da fé.
Jesus é a solução de todos os problemas. Inútil procurá-la nos sindicatos, nos partidos, na mobilização da sociedade.
Vivemos num universo fragmentado por múltiplas vozes, frente a um horizonte desprovido de absolutos, com a nossa própria imagem mil vezes distorcida no jogo de espelhos.
Engolida pelo vácuo pós-moderno, a religião tende a reduzir-se à esfera do privado; olvida sua função social; ampara-se no mágico; desencanta-se na autoajuda imediata.
Nesse mundo secularizado, a religião perde espaço público, devido à racionalidade tecnocientífica, ao pluralismo de cosmovisões, à racionalidade econômica.
Sobretudo, deixa de ser a única provedora de sentido. Seu lugar é ocupado pelo oráculo poderoso da mídia; os dogmas inquestionáveis do mercado; o amplo leque de propostas esotéricas.
A crise da modernidade favorece uma espiritualidade adaptada às necessidades psicossociais de evasão, da falta de sentido, de fuga da realidade conflitiva. Espiritualidade impregnada de orientalismo, de tradições religiosas egocêntricas, ou seja, centradas no eu, e não no outro, capazes de livrar o indivíduo da conflitividade e da responsabilidade sociais.
Agora, manipula-se o sagrado, submetendo-o aos caprichos humanos.
O sobrenatural se curva às necessidades naturais.
A solução dos problemas da Terra reside no Céu. De lá derivam a prosperidade, a cura, o alívio.
As dificuldades pessoais e sociais devem ser enfrentadas, não pela política, mas pela autoajuda, a meditação, a prática de ritos, as técnicas psicoespirituais.
Reduzem-se, assim, a dimensão social do Evangelho e a opção pelos pobres.
O sagrado passa ser ferramenta de poder, para controle de corações e mentes, e também do espaço político.
O Bem identifica-se com a minha crença religiosa. Bin Laden exigia que o Ocidente se convertesse à sua fé, não ao bem, à justiça, ao amor.
Essa religião, mais voltada à sua dilatação patrimonial que ao aprimoramento do processo civilizatório, evita criticar o poder político para, assim, obter dele benefícios: concessão de rádio e TV etc.
Ajusta a sua mensagem a cada grupos social que se pretende alcançar.
Sua ideologia consiste em negar toda ideologia. Assim, sacraliza e fortalece o sistema cujo valor supremo, o capital, se sobrepõe aos direitos humanos. Como observa o teólogo José Comblin, as forças que hoje dominam são infinitamente superiores às das ditaduras militares.
Aos pobres, excluídos deste mundo, resta se entregarem às promessas de que serão incluídos, cobertos de bênçãos, no outro mundo que se descortina com a morte. Frente a essa “teologia” fica a impressão de que a encarnação de Deus em Jesus foi um equívoco.
E que o próprio Deus mostra-se incapaz de evitar que sua Criação seja dominada pelas forças do mal.
Felizmente, nas Comunidades Eclesiais de Base, nas pastorais sociais, nos grupos de leitura popular da Bíblia, fortalece-se a espiritualidade de inserção evangélica.
A que nos induz a ser fermento na massa e crê na palavra de Jesus, de que ele veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10).
Fomos criados para ser felizes neste mundo.
Se há dor e injustiça, não são castigos divinos, resultam da obra humana e por ela devem ser erradicadas.
Como diz Guimarães Rosa, “o que Deus quer ver é a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre e amar, no meio da tristeza.
Todo caminho da gente é resvaloso. Mas cair não prejudica demais.
A gente levanta, a gente sobe, a gente volta.”
Fonte: Domtotal
Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Além disso, recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares.
Bem como, foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004.
É autor de “A Obra do Artista uma visão holística do Universo”, “Um homem chamado Jesus”, “Batismo de Sangue”, “A Mosca Azul”, entre outros.
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