Religião

A cooptação da coisa religiosa e seus riscos

A cooptação da coisa religiosa e seus riscos

O cristianismo foi se institucionalizando, ao longo do tempo, e, tornando-se efetivamente uma religião

O verso “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor”, do Salmo 33 (v. 12) é insistentemente repetido por religiosos do espectro neopentecostal. O cristianismo cresceu como religião proselitista e expansionista. Já no Novo Testamento temos traços bastante explícitos de como a Boa-Nova do Evangelho deveria se espalhar por cada canto do mundo. É certo, porém, que no cristianismo primitivo e, antes, já na pregação de Jesus, isso não significava pregação proselitista no sentido de formar uma religião, e sim um estilo de vida.

O cristianismo foi se institucionalizando, ao longo do tempo, e, tornando-se efetivamente uma religião, adotou esta postura proselitista e expansionista contando com o aparato do poder político, desde o Império Romano. Tivemos, na história do Ocidente, longos séculos sob as forças do que se chamou de Cristandade, com hegemonia do cristianismo, incluindo na formação da cultura e das estruturas de pensamento, para além do comportamento. O declínio da Cristandade, como hegemonia católica, com a Reforma Protestante, inclusive, em meio à mudança de paradigma com surgimento da Modernidade, anunciou um recolocar do cristianismo na ordem social (para muitos, essa mudança significaria, mesmo, o fim do cristianismo).

Séculos depois, em tempos de pós-cristianismo, a religião cristã não desapareceu. Transformou-se. O catolicismo continua forte, sobretudo na América Latina, mas ocupante de outra posição na ordem social e religiosa. O Protestantismo também se transformou: conheceu movimentos em ondas que provocaram mudanças teológicas e religiosas. Em nosso país, temos visto o crescimento do movimento neopentecostal que tem criado nova visão de mundo, sobretudo em meio aos mais empobrecidos e empobrecidas da sociedade. E é, justamente nestes meios, em que tem crescido um avanço sobre a política, como verdadeira cooptação da coisa pública, para um interesse de poder, com fundo proselitista e expansionista. No catolicismo reacionário, nota-se a mesma coisa.

É preciso, com urgência democrática, frear esses avanços. A participação de pessoas religiosas nos muitos processos políticos é desejada e importante. Para o cristianismo, o envolvimento na busca pelo bem-viver para o conjunto das pessoas é, inclusive, uma questão ética. A apropriação da coisa pública, contudo, para o fortalecimento de uma ideologia religiosa, por mais bem-intencionada que seja, é um risco para a democracia e para o conjunto da sociedade e uma desvirtuação do espírito da religião. É preciso que refltiamos sobre isso, e busquemos caminhos para a superação destes arroubos autoritários de lideranças religiosas que cooptam a coisa pública.

O Dom Especial desta semana é um chamamento a esta reflexão, sobretudo quando estamos ainda tão próximos das últimos eleições – as mais importantes desde a redemocratização – e temos visto como o aparato religioso tem sido suporte para ideologias que comprometem a democracia, provoca violências e mortes. No primeiro artigo, O fundamentalismo religioso e sua problemática no campo político, de Ana Teresa Dantas, provoca-nos à reflexão sobre a importância de um Estado laico, para a garantia das liberdades religiosas e a busca pela garantia da dignidade de todos os cidadãos e cidadãs. Feliciano José Kissua, no artigo A lógica da exclusão religiosa frente as políticas públicas, faz uma leitura sociológica da religião, apontando para os riscos de quando ela assume uma postura exclusivista e de exclusão, com consequências graves para o conjunto da sociedade. Por fim, no artigo A moral cristã frente aos excluídos da sociedade, de Robert Henrique Sousa Dantas, faz um chamamento à questão ética, tão fundamental para o cristianismo, em tempos em que o moralismo tende a trazer retrocessos para a sociedade.

Boa leitura!

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