Simplicidade e gratuidade
Reflexão sobre a liturgia do 22º domingo do tempo comum
1ª leitura: (Eclo 3,17-18.20.28.29 [19-21.30-31]) A verdadeira modéstia de vida – Não se trata da falsa modéstia da raposa, mas da verdadeira, que consiste na consciência de que só Deus é poderoso e bom. O homem deve sempre recorrer a ele. Daí a atitude do sábio: segurança frente aos poderosos, pois sua confiança está em Deus; a magnanimidade para com os fracos, pois pode contar com Deus. 3,17-20 cf. Eclo 4,8-10 [11]; Mt 20,26-28; Lc 22,24-26; Pr 3,34; Mt 11,25; 3,28-29 cf. Pr 2,1-5.
2ª leitura: (Hb 12,18-19.22-24a) Deus se tornou manifesto e acessível em Cristo – A manifestação de Deus no A.T. (no Sinai) era inacessível (12,18-21). No N.T., verifica-se o contrário (12,22-24): agora vigora uma ordem melhor (9,10); a manifestação de Deus (em Cristo) é agora acessível, menos “terrível”, porém, mais comprometedora. Não é por ser mais humana, que ela seria menos divina. Antes pelo contrário! No homem Jesus, Deus se torna presente. Esta presença chama-se “Monte Sião”, “Cidade do Deus vivo”, “Jerusalém celeste”. Na sequência da perícope de hoje tira-se a conclusão: não recusar a palavra do Cristo. 12,18-19 cf. Ex 19,16-19; 20,19; Dt 4,11-12; 5,22-23. 12,22-24 cf. Ap 14,11; Hb 11,10; 13,14; Ap 21,2.10; Rm 2,6; Ts 1,6-8; Hb 8,6; 9,15; Gn 4,10.
(Leitura alternativa: 1Pd 5,5b-7.10-11 – Humildade e grandeza.
Evangelho: (Lc 14,1.7-14) Modéstia e gratuidade – Lc gosta de apresentar Jesus como viajante e hóspede: a comunhão de mesa é o lugar da amizade, Jesus quer ser amigo. Mas amigo não esconde a verdade. Na casa de um fariseu, Jesus ensina algumas regras para a refeição: 1) não procurar o primeiro lugar, para que o dono da casa no-lo possa oferecer; 2) não convidar as pessoas de bem para o banquete, mas o que não podem retribuir, pois só assim demonstramos gratuidade e magnanimidade. Em outros termos: 1) saber receber de graça; 2) saber dar de graça. O sentido profundo desta lição se revela na Última Ceia (22,24-27), onde o anfitrião é o Servo, que dá até a própria vida. Cf. Pr 25,6-7; Jo 13,1-15; Lc 18,14; Mt 23,12.
Jesus é um destes hóspedes que não ficam reféns de seus anfitriões. Já o mostrou a Marta (16º dom.); mostra-o também hoje (evangelho). O anfitrião é um chefe dos fariseus. A casa está cheia de seus correligionários, não muito bem-intencionados (14,2). Para começar, Jesus aborda o litigioso assunto do repouso sabático, defendendo uma opinião bastante liberal (14,3-6). Depois, numa parábola, critica a atitude dos fariseus, que gostam de ser publicamente honrados por sua virtude, também nos banquetes, onde gostam de ocupar os primeiros lugares. Alguém que ocupa logo o primeiro lugar num banquete não pode mais ser convidado pelo anfitrião para subir a um lugar melhor; só pode ser rebaixado, se aparecer alguma pessoa mais importante. É melhor ocupar o último lugar, para poder receber o convite de subir mais. Alguém pode achar que isso é esperteza. Mas o que Jesus quer dizer é que, no Reino de Deus, a gente deve estar numa posição de receptividade, não de auto-suficiência.
A segunda parábola relaciona-se também com o banquete: não convidar os que nos podem convidar de volta, mas o que não têm condições para isso. Só assim nos mostraremos verdadeiros filhos do Pai, nos deu tudo de graça. Claro que esta gratuidade pressupõe a primeira atitude: o saber receber.
Portanto, a mensagem de hoje é: saber receber de graça (humildade) e saber dar a graça (gratuidade). A 1ª leitura sublinha a necessidade da humildade, oposta à auto-suficiência.
A 2ª leitura não demonstra muito parentesco temático com a 1ª e o evangelho. Contudo, complemente o tema da gratuidade, mostrando como Deus se tornou, gratuitamente, acessível para nós, em Jesus Cristo. O tom da leitura é de gratidão por este mistério.
Graça, gratidão e gratuidade são os três momentos do mistério da benevolência que nos une com Deus. Recebemos sua “graça”, sua amizade e bem-querer. Po isso nos mostramos agradecidos, conservando seu dom em íntima alegria, que abre nosso coração. E deste coração aberto mana uma generosa gratuidade, consciente de que há mais felicidade em dar do que em receber (cf. At 20,35). O que não quer dizer que a gente não pode gostar daquilo que recebe. Significa que só atingirá a verdadeira felicidade quem souber dar gratuitamente. Quem só procura receber, será um eterno frustrado.
Com vistas à comunicação na magnanimidade, a humildade não é a prudência do tímido ou do incapaz, nem o medo de se expor, que não passa de egoísmo. A verdadeira humildade é a consciência de ser pequeno e de ter que receber, para poder comunicar. Humildade não é tacanhice, mas o primeiro passo da magnanimidade. Quem é humilde não tem medo de ser generoso, pois é capaz de receber. Gostará de repartir, por que sabe receber; e de receber, para poder repartir. Repartirá, porém, não para chamar a atenção para si, como o orgulhoso que distribui ricos presentes, e, sim, porque, agradecido, gosta de deixar seus irmãos participar dos dons que recebeu.
Podemos também focalizar o tema de hoje com uma lente sociológica. Torna-se relevante, então, a exortação ao convite gratuito. Jesus manda convidar pessoas bem diferentes daquelas que geralmente se convidam: em vez de amigos, irmãos, parentes e vizinhos ricos, convidem-se pobres, estropiados, coxos e cegos – ou seja, em vez do círculo social da gente, os marginalizados. E na parábola seguinte, do grande banquete, o “senhor” convida, finalmente, exatamente as quatro categorias mencionadas (Lc 14,21).
O amor gratuito é imitação do amor de Deus. A autenticidade do amor gratuito se mede pela pouca importância dos beneficiados: crianças, inimigos, marginalizados, enfermos (cf. Mt 25,31-46). Jesus não proíbe gostar de parentes e vizinhos. Mas realmente imitar o amor gratuito, a hésed de Deus, a gente só o faz na “opção preferencial” pelos que são menos importantes.
Simplicidade e gratuidade
As leituras de hoje insistem em virtudes fora de moda: mansidão e humildade (1ª leitura), modéstia e gratuidade (evangelho. Quanto à modéstia, Jesus usa um argumento de sabedoria popular, do bom senso: se alguém for sentar no primeiro lugar num banquete e um convidado mais digno chegar depois dele, esse primeiro terá de ceder seu lugar e contentar-se com qualquer lugarzinho que sobrar. Mas quem se coloca no último lugar só pode ser convidado para subir e ocupar um lugar mais próximo do anfitrião…
Ora, citando essa humildade, Jesus pensa em algo mais. Por isso, acrescenta uma outra parábola, para nos ensinar a fazer as coisas não por interesse egoísta, mas com gratuidade. Seremos felizes – diz Jesus – se convidarmos o que não podem retribuir, porque Deus mesmo será então nossa recompensa. Estaremos bem com ele, por termos feito o bem aos seus filhos mais necessitados.
A gratuidade não e a indiferença do homem frio, que faz as coisas de graça porque não se importa com nada, pois isso é orgulho! Devemos ser gratuitos simplesmente porque os nossos “convidados! São pobres e sua indigência toca o nosso coração fraterno. O que lhes damos tem importância, tanto para eles como para nós. Tem valor. Recebemo-lo de Deus, com muito prazer. E repartimo-lo, porque valorizamos. Dar o que tem valor não partilha: é liquidação… Mas quando damos de graça aquilo que com gratidão recebemos como dom de Seu, estamos repartindo o seu amor.
Tal gratuidade é muito importante na transformação que a sociedade está necessitando. Importa não apenas “fazer o bem sem olhar para quem” individualmente, mas também social ou coletivamente: contribuir para as necessidades da comunidade, sem desejar destaque ou reconhecimento especial; trabalhar e lutar por estruturas mais justas, independentemente do proveito pessoal que isso nos vai trazer; praticar a justiça e humanitarismo anônimos; ocupar-nos com os insignificantes e inúteis…
Assim, a lição de hoje tem dois aspectos: para nós mesmo, procurar a modéstia, ser simplesmente o que somos, para que a graça de Deus nos possa inundar e não encontre obstáculo em nosso orgulho. E para os outros, sermos anfitriões generosos, que não esperam compensação, mas, sem considerações de retorno em dinheiro e fama, oferecem generosamente suas dádivas a quem precisa.