O sínodo de Francisco quer acabar com a hierarquia católica?
sobre o moReflexõesvimento de católicos “assinodais”
Mirticeli Medeiros*
Sem dúvida, algum vídeo ou texto de ‘influencer católico’, demonizando o sínodo da sinodalidade que está em curso, caiu, de repente, na sua timeline. E você, que lê agora este texto, talvez tenha se deixado levar por muitas dessas interpretações infundadas a respeito de uma das assembleias eclesiais mais importantes da história. Curiosamente, o sínodo que reforça o conceito de catolicidade assusta tanto. Mas por quê?
Bom, deixa eu adivinhar. Algum jovem mediano, que aprendeu recentemente a fumar charuto, e conseguiu emplacar um canal no youtube, te convenceu que o Papa quer acabar com a hierarquia da Igreja, não é mesmo? Ou que o sínodo – que para catolicismo nada mais é que um organismo consultivo – terá o peso de uma reforma canônica? Sinto te dizer que talvez a fumaça do Romeu e Julieta Wide Churchill causou um estrago enorme à mente desse cidadão que está te doutrinando – se é isso que essa pessoa está fumando mesmo.
Para início de conversa, a sinodalidade não é uma invenção de Francisco, mas, para o cristianismo, é um modus vivendi et operandi, um modo de viver e de atuar da própria Igreja, não simplesmente um organismo burocrático que se limita a debater e documentar alguns assuntos.
Aliás, o sínodo surge num contexto no qual a própria igreja, enquanto instituição, começa a se estruturar. Não por acaso, o cristão em si é tido, por alguns padres da Igreja, como um “ser sinodal”.
Quem vai dizer isso, de maneira mais precisa, é Inácio de Antioquia (30 – 107 d.C). Ele vai afirmar, num escrito do II, antes mesmo do surgimento de “núcleos sinodais” diocesanos e metropolitanos, que se estruturarão somente no século III, que os membros da comunidade cristã eram, por natureza, σύνοδοι – do grego sinodoi, companheiros de caminho/viagem.
Por isso, o Concílio Vaticano II, evocando a própria sinodalidade, embora não a mencione claramente, vai reforçar que a instituição é formada pelo “povo santo de Deus”, fazendo ruir o conceito medieval de societas perfecta, que vê somente na hierarquia um modelo quase ‘celeste e infalível’ de organização.
Em meados do século II, mais ou menos, já existia uma preocupação, entre os primeiros cristãos, de atuar na colegialidade. Sem contar que, nessa mesma época, colegialidade e sinodalidade surgem como conceitos praticamente inseparáveis.
Os bispos, nos primeiros séculos, se reúnem em assembleia para discutir questões importantes para a vida da comunidade. E algumas fontes antigas atestam que, em alguns casos, a própria plebs (o povo de Deus, no caso) é convidada a auxiliar nesse discernimento, a depender do assunto. Ou seja, se convocava um sínodo para evitar rachaduras num corpo eclesial formado por presbíteros, diáconos e leigos, os quais, juntos, eram considerados guardiães dessa harmonia por causa do batismo que os congregava.
Cipriano de Cartago (200 – 258 d.C) vai dizer, inclusive, “que da mesma forma que nada deve feito nihil sine consilio vestro – (sem o conselho dos presbíteros e diáconos) et sine consensu plebis (nem sem o consenso do povo), deve-se levar em consideração que o episcopatus unus est cuius a singulis in solidum pars tenetur (O episcopado é uno, cada parte do qual é mantido por cada um para o todo).
No Concílio de Cartago de 254, liderado por Cipriano, para resolver a reinserção dos lapsos, ou seja, daqueles que haviam negado Jesus no período da perseguição, a própria comunidade foi consultada pelos bispos sobre como proceder nesse caso. Uma vez excomungados, esses “traidores da fé”, poderiam, por meio de um caminho penitencial, retornar à comunhão eclesial? Nesse caso, os leigos também precisavam dar seu próprio parecer, uma vez que seriam eles a conviver, lado a lado, com os “desertores”. E é esse padre da Igreja quem vai dizer, na sua Epístola 14:
“Desde o princípio do meu episcopado propus-me nada fazer por iniciativa própria sem o vosso parecer e o consenso do nosso povo”.
Ou seja, mesmo assim, nem os padres da Igreja nem o Papa Francisco, no ato de convocar o sínodo, disseram que a hierarquia estaria com os dias contados nem “menos hierarquizada” se passasse a contar com o apoio, por meio da consulta, do resto da comunidade. Até porque, desde os primeiros séculos, quem convoca o sínodo é a autoridade local/metropolitana. É o próprio pontífice quem vai dizer, em muitas ocasiões, que “o sínodo não é um parlamento”, mas um espaço de escuta, e do qual podem sair “alguns diagnósticos”.
Fizemos só uma introdução. No próximo artigo, traremos outros dados históricos sobre o sínodo na história da Igreja, focando no surgimento dos concílios e, posteriormente, dos sínodos régios. Fique ligado.
Dom Total