Páscoa: Nova Criação
Reflexão sobre a liturgia do segundo domingo da Páscoa.
1ª leitura: (At 5,12-16) Adesão numerosa à comunidade – Vendo uma comunidade realmente fraterna, sobretudo, quando sinais prodigiosos a acompanham, as pessoas perguntam: “Que significa isso?” Esses sinais devem conduzir a Jesus de Nazaré, cuja ressurreição a comunidade proclama (4,33). * 5,12 cf. At 2,42-47; 4,32-35; 3,11 * 5,14 cf. At 2,46-47; 4,4; 6,1-7; 9,31; 11,24 * 5,15-16 cf. Mc 6,56; Lc 4,40-41; At 8,6-8.
2ª leitura: (Ap 1,9-11a.12-13.17-19) “Sou o vivente que foi morto” – Ap 1,9-20 é a maravilhosa visão da vocação do apocalíptico. O Filho do Homem por seu traje é caracterizado como sacerdote, rei e juiz (1,13-16). Era morto, e vive. Dispõe de tempos e mundo: a última palavra sobre a História pertence a ele. – Referência especial ao “dia do Senhor”, o primeiro da semana, o domingo, dia da ressurreição. Como para o autor do Ap, deve ser para cada cristão dia de encontro com o Ressuscitado. * 1,13 cf. Dn 7,13; 10,5-6; Ez 1,26 * 1,17 cf. Ez 1,28; Dn 8,18; Is 44,6; Ap 1,8 * 1,18 cf. Jo 1,4; 5,21; Hb 7,25; Os 13,14.
Evangelho: (Jo 20,19-31) Missão pelo Cristo ressuscitado – A Ressurreição é nova criação. Restabelece a paz. Novamente é dado o Espírito. O homem deve “tirar o pecado do mundo”, prolongando a missão de Cristo (20,23; cf. Jo 1,29.35). – A primeira geração teve o privilégio de ver e apalpar o ressuscitado, que inaugurou esta nova realidade. As gerações seguintes deverão crer por causa de seu testemunho.
O segundo domingo pascal, domingo das “vestes brancas”, acentua a nova existência do cristão regenerado pelo batismo (ou pela renovação do compromisso batismal). Na 1ª leitura, início de uma série de leituras de At, esta novidade se manifesta na atuação da primeira comunidade cristã, suscitando admiração por causa de sua união e dos sinais que a acompanham. O novo povo de Deus cresce ligeiro. Com razão, o salmo responsorial comenta: a pedra rejeitada tornou-se pedra angular.
A 2ª leitura é a visão inicial do Apocalipse. No “primeiro dia da semana”, dia da ressurreição e da assembleia cristã, ele vê o Cristo glorioso, o “primeiro e o último” (1,17), o “vivo que foi morto” (1,18) e que “tem as chaves da morte”, ou seja, tem a morte em seu poder (1,8). É a aparição do Cristo como Senhor do Universo. Os tempos são nele resumidos e recapitulados. No fim do livro, ele se manifestará como o renovador do Universo.
A novidade da situação pascal aparece também no legado que o Ressuscitado deixa para sua Igreja: a paz, como dom e como missão. A paz é dom escatológico por excelência, a renovação da harmonia com Deus, o perdão (evangelho). Esta nova realidade vem no Espírito, o Espírito do batismo, o Espírito de Cristo. Não é fruto do mero esforço nosso. É um dom dado a todos os verdadeiros fiéis, os que se confiam a Cristo e em Cristo se tornam homens novos; os que não são determinados por critérios biológicos e sociológicos, mas “nasceram de Deus” (Jo 1,12-13). De modo especial, a liturgia de hoje se dirige aos recém-nascidos filhos de Deus.
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A esta novidade podemos dedicar uma consideração comunitária e histórica, como é sugerido especialmente pelas duas primeiras leituras. A comunidade cristã aparece, no mundo, como um mundo novo, escatológico (cf. os sinais). As pessoas aderem a ela para “serem salvas” (na hora do Juízo). No Ap, Cristo aparece como o Senhor da História, o “Filho do Homem” daniélico (1,12). Este Senhor da História foi morto. Sua morte aconteceu por causa de sua total solidariedade com a história humana, na qual ele se integrou, numa práxis autêntica, conscientizadora e libertadora, procurando restituir ao homem seu Deus, e a Deus, sua Lei e seu povo. Sua prática em prol da vida o levou ao testemunho radical da morte (cf. Ap 1,4: a Testemunha Fiel). Ora, se este Senhor, que por nós e conosco enfrentou a rejeição e finalmente a morte, agora vive, então, a História, que ele assumiu, vive com ele. No Cristo pascal revive a História humana para uma vida nova, totalmente diferente, vencedora do antigo pecado, que em Cristo foi crucificado. Uma História que já pertence à não-História, ao fim dos tempos. Pois “ele” é o primeiro dos homens, realizando a vocação original da humanidade, ou seja, a completa filiação divina; mas nisso ele é também o último, a plenitude.
Essa novidade da História humana deve transparecer na comunidade dos renovados pelo batismo. A renovação pascal não é apenas uma revigoração interior, nem apenas um retomar de algumas boas práticas e um provisório desistir de alguns vícios. Isso seria apenas “variações sobre um tema antigo”, como se diz na música. Temos de compor uma peça nova, tendo uma estrutura nova. E, mesmo se esta não for a melhor, o fato de ser nova e melhor que a anterior será um sinal de que escolhemos o lado daquele em quem nossa história antiga morreu, para ressuscitar na força de Deus.
A PÁSCOA DE CADA SEMANA
O cristão começa a semana com cara de domingo e não de segunda-feira. Pois, como diz o próprio nome, a segunda-feira é o segundo dia da semana. O primeiro é o domingo, por diversas razões.
Na liturgia do 2º domingo pascal, o autor do Apocalipse faz questão de dizer que ele teve a sua visão no “primeiro dia da semana”, no domingo (2ª leitura). É o dia da ressurreição: o que ele vê, na sua visão, é “o morto que está vivo”, Cristo ressuscitado. É o dia da celebração: ele vê uma liturgia celeste em honra de Jesus, o Cordeiro pascal imolado por nós.
Também o evangelho de hoje nos fala, por duas vezes, do primeiro dia da semana. A primeira cena deste evangelho situa-se no próprio dia da Páscoa, quando Jesus aparece aos discípulos, mostrando-se ressuscitado e vivo, para derramar sobre eles o Espírito Santo, que lhes dá o poder de tirar o pecado do mundo, como ele mesmo tinha feito. A segunda cena ocorre “oito dias depois” (portanto, outra vez no primeiro dia da semana), quando Jesus aparece para se mostrar a Tomé e confirmar a sua fé.
O primeiro dia da semana é o dia de Jesus e de Deus, domingo, Dies Domini, dia do Senhor. Lembra o primeiro dia da criação, quando Deus criou a luz. A ressurreição de Jesus é novo primeiro dia da criação, nova luz que surge sobre o mundo. E cada domingo é, para o cristão, a comemoração dessa luz pascal e dessa nova criação. Nós mesmos somos criaturas novas, chamadas à vida na luz – a luz de Cristo morto e ressuscitado.
O domingo é páscoa semanal, dia da comunidade, lembrete da nova criação que nós somos em Cristo. Não só pessoalmente, mas como comunidade, chamada a dar um novo tom ao mundo. Os habitantes de Jerusalém perceberam essa novidade. Muitos aderiram à comunidade e todo o povo a elogiava, diz a 1ª leitura de hoje. Também hoje, o mundo deve perceber essa novidade no novo rumo que os cristãos imprimem à história, transformando-a de história de opressão em história de libertação. O domingo, com seu descanso físico, sua alegria espiritual e sua comunhão na celebração, deve alimentar em nós esta existência pascal nova e transformadora.
Israel celebra o dia santo no sábado, dia do descanso de Deus depois de completada a criação. É um símbolo religioso muito profundo. O próprio Jesus observava normalmente o sábado, tomando, porém, a liberdade de fazer curas ou permitir colher espigas, porque a vida que Deus criou deve também ser conservada no dia de sábado… Os cristãos escolheram como dia santo o dia depois do sábado, o dia da Ressurreição, da restauração da vida, pensando não tanto na criação acabada, mas na novidade de vida inaugurada por Jesus. Por isso, os Pais da Igreja chamaram este dia de “oitavo dia”: ele está fora da sequência dos sete dias da semana, é de outro nível. Simboliza o tempo novo e definitivo. Será que isso se reconhece na maneira em que celebramos o domingo?