Teologia da libertação
A Igreja Católica condenou, em 1984 e 1986, os principais fundamentos da Teologia da Libertação
E mais uma vez vamos nos socorrer do excelente livro de Rubens Pinto Lyra, Bolsonarismo – Ideologia, Psicologia, Política e temas afins (2021), de leitura obrigatória para quem pretender conhecer o momento presente, que se espera encerrada com a derrota de Bolsonaro nas eleições para Presidente, neste ano de 2022.
O livro antes aludido deve ser lido por quem ainda não abdicou do direito de pensar e também por todos aqueles que não renunciaram à crítica construtiva dos erros perpetrados durante o governo Bolsonaro, certo de que a paixão, principalmente quando cega, é obstáculo para uma análise isenta dos retrocessos democráticos que existiram e, portanto, é um obstáculo para o aperfeiçoamento de nosso sistema democrático.
Certo é que, infelizmente, “a Igreja Católica condenou, em 1984 e 1986, os principais fundamentos da Teologia da Libertação, supostamente, pela sua ênfase exclusiva no pecado institucionalizado, coletivo ou sistêmico, na eliminação da transcendência religiosa, na desvalorização do magistério da igreja e no incentivo à luta de classes. Essa condenação enfraqueceu a sua influência, tendo sido a principal responsável pelo seu declínio, nos anos noventa” (Lyra, 217).
E ressurgindo das cinzas, exemplo de Fênix, pelas mãos do Papa Francisco a Teologia da Libertação foi indiretamente reabilitada, considerando que essa Papa retomou o diálogo com os expoentes dessa Teologia e também por ser adepto de uma de suas modalidades, ou seja, da Teologia do Povo.
Leonardo Boff, um dos defensores da Teologia da Libertação no Brasil, disse que o papa Francisco foi uma graça recebida por nós e que a preferência desse papa foi a centralidade ao mundo dos pobres.
O amor social foi preconizado por esse Sumo Pontífice, na encíclica Fratelli Tutti (Lyra, 218), com destaque para as seguintes colocações: “Hoje, os problemas como a fome e o desemprego, a exclusão das grandes maiorias são de natureza social e política, e, portanto, ética. Então, a fé deve demonstrar sua força de mobilização e transformação” (Fratelli Tutti, 2020, n. 166).
A Igreja Católica que, inicialmente apoiou o golpe civil-militar de 64 (até a OAB fez esta besteira), reconsiderou tal ato, diante das torturas praticadas pelos golpistas (que acabou se institucionalizando), e optou, em um momento necessário, por socorrer os considerados “terroristas”, ou seja, os que resistiam ao regime então vigente, a partir de 64.
Entre os resistentes contra os desmandos de poder, de destacar-se a figura notável de D. Hélder Câmara, denunciador das torturas e de outras arbitrariedades,em diversos fóruns internacionais. Foi por isto que o nome deste mártir foi silenciado nos meios de comunicação, controlados totalmente pelos “donos do poder”. Dom Hélder, então Arcebispo de Olinda e Recife, foi também incentivador das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), instituição leiga, com atuação preponderante no Nordeste e que se comprometeram com a “opção preferencial pelos pobres”.
As comunidades Eclesiais de Base contribuíram “decisivamente para viabilizar uma nova estratégia, que substituiu a lógica da luta armada pela da participação popular. Destarte, inspiradas na Teologia da Libertação, favoreceram uma mudança na práxis política, que se estendeu, além de seguimentos da própria hierarquia, a amplos setores da sociedade civil e da política brasileiras.” (Lyra, 221).
Para as CEBs, a democracia não era apenas questão de princípio (teórica), mas sim e principalmente questão a ser colocada em prática. Entenderam, essas Comunidades, com correção, que os princípios democráticos, ditados pela Revolução Francesa,careciam (e ainda carecem) de ser concretizados, considerando que não passavam de meros aspectos formais, ditados pela burguesia liberal.
Não se pode olvidar também da postura firme do Cardeal-Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Arns, que prestou inúmeras assistências aos presos políticos, bem como pela coragem de enfrentar a repressão do regime militar. Para este religioso a oposição da Igreja ao regime era uma necessidade, uma obrigação, evangelicamente falando.
Foi D Paulo que, na catedral da Sé, em 1976, celebrou missa ecumênica em razão da morte de Vladimir Herzog, consequência das inúmeras torturas sofridas nas dependências do DOI-CODI paulista, de triste memória, com destaque para o torturador Delegado Fleury, mestre na arte dos interrogatórios,que nada ficavam a dever para os homens de Hitler.
O jornalista Vladimir Herzog foi considerando pelo sistema de então como morto por enforcamento. Porém, morreu consequencia de inúmeras torturas. Aviúva e filhos de Herzog acabaram indenizados, considerando que a União foi condenada, uma vez desmontada a farsa.
Dom Paulo também se colocou, quando da invasão Da PUC-SP, em defesa da autonomia universitária e das liberdades democráticas, em uma época que era “conveniente” se calar, para sobreviver. Certo é que, em razão de ser já conhecido internacionalmente, o aparelho repressivo teve que tolerar estes dois ícones da resistência à ditatura: D. Helder Câmara e D. Paulo Arns.
Entretanto, alguns religiosos católicos, menos conhecidos, foram assassinados pelo regime militar, tidos também por terroristas, em razão de se simpatizarem com a causa dos confrontantes. E outros foram torturados, selvagemente, como é o caso, por exemplo, de Frei Tito, que acabou mentalmente doente, consequências dos espancamentos sofridos.
Também há que se lembrar de D. Pedro Casaldáliga, bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, que se destacou pela defasa dos pobres e dos indígenas e pelo apoio dado à expansão das CEBs. D. Pedro era contra o latifúndio, apoiava o MST e a Via Campesina. Um verdadeiro “comunista”. Portanto, recebeu várias ameaças de morte, bem como processos de expulsão do Brasil, no período da ditatura militar.
Nestas idas e vindas, a hegemonia conservadora católica, em âmbito mundial, foi realimentada no Pontificado de João Paulo II que, por meio do então Cardeal Joseph Ratzinzer (que se tornou Papa, posteriormente), na qualidade de Prefeito da ultraconservadora Congregação da Doutrina da Fé, perseguiu os expoentes da Teologia da Libertação.
Como aliado de Reagan, “João Paulo II endossou o projeto neoliberal de globalização. Também tomou posição a favor de guerras e buscou obstaculizar o processo de secularização iniciado por João XIII e aprofundado por Paulo VI.” (Lyra, 224).
Deste modo, a ascensão desse ultraconservador,Ratzinger, em 19 de abril de 2003, ao Papado, com o nome de Bento XVI, foi um período dificíl para os setores progressistas da Igreja Católica. “Com efeito, Bento XVI enfraqueceu as arquidioceses mais renovadoras da igreja, como a de São Paulo, desmembrada em cinco dioceses, reduzindo, com essa medida, a sua área de jurisdição. Da mesma forma, os bispos que nomeou ampliaram a influência da ala conservadora da igreja (Vasconcelos, 2005)” Lyra, 224).
E esse clima de hostilidade aos progressistas da Igreja Católica acabou dissipando com a chegada do cardeal argentino Bergoglio, no dia 19 de março de 2013, ao trono máximo, com assumidas posições críticas ao capitalismo, como fonte de desigualdade e de uma economia que mata.
O papa Francisco “vincula os ensinamentos de Cristo a notórias preocupações com a igualdade social e a interpretação bem menos ortodoxa das Escrituras, com a consequente valorização do conhecimento científico (UOL, 2017)” (Lyra, p. 225).
Portanto, na atualidade o catolicismo, diante das colocações do Papa Francisco, é contrário ao ideário neoliberal, a desprezar a pobreza e aumentar a desigualdade social. Com certeza, a teologia da libertação restou, (in) diretamente, fortalecida, com consequente ganho maior de espaço e reconhecimento, frente às posições deste grande Papa jesuíta que, escandalizando o mundo, chegou a afirmar que “comunistas pensam como os cristões”.
Os pensamentos contrários ao neoliberalismo excludente, de papa Francisco, se fazem presentes em duas de suas encíclicas, a Laudato Si (2015) (louvado sejas) e Fratelli Tutti (2020). Na primeira o Papa Francisco, após sublinhar a desigualdade social mundo afora, questiona a preocupação em salvar bancos, com injeção de dinheiro público, em detrimento da população. É uma intervenção estatal ao inverso. E os neoliberais não querem intervenção!
Na segunda encíclica, antes mencionada, mais uma vez o excludente dogma neoliberal foi condenado, bem como a especulação financeira e o lucro fácil.Papa Francisco se aproxima, nesta preocupação com os pobres, de São Francisco de Assis.
Ressalta, finalmente, que o Papa Francisco é amigo do Frei Leonardo Boff, punido por Bento XVI, com “silêncio obsequioso” (um cala a boca), além de ter prestigiado o expoente da Teologia da Libertação, o teólogo Gustavo Gutierrez, congratulando lhe pelos noventa anos e convidando para audiência no Vaticano.
DomTotal