Religião

Graça de Deus e esforço humano articulados para servir

Graça de Deus e esforço humano articulados para servir

Segundo Santo Inácio, tudo que existe de bom neste mundo provém de Deus; A obra de santificação toca antes de tudo a Deus

A  consequência direta da vontade de uma progressão metódica será a  preocupação constante de saber aonde ir, definindo assim os objetivos a  serem atingidos. Globalmente, aquele que empreende o caminho dos  Exercícios sabe o que quer: “Buscar e encontrar a vontade divina na  organização da própria vida para a salvação da alma” (EE 1).

Esta  intenção global irá se concretizando ao longo do caminho dos Exercícios  em uma série de objetivos que irão sendo individuados e passíveis de  serem controlados. Inácio gosta de usar a expressão “obter o que se  procura”, “buscar com diligência o que tanto deseja” (EE 20).

O  fim último permanecerá sempre o mesmo, mas, segundo o grau a que  chegou, o exercitante terá que se propor uma tal realização ou aspecto  da experiência cristã. Daí o recorrer da fórmula: “Pedir o que eu  quero”[1]. O pedir é uma maneira para saber claramente o que se quer.  “Com a intenção de encontrar o que quero” (EE 76).

A pessoa toda  do exercitante é aqui requerida. Nos diversos exercícios que lhe vão  sendo propostos, ele deverá lançar mão de todas as reservas de energia  de que dispõe, como os exercícios físicos fazem trabalhar todos os  músculos do corpo[2].  Assim, deverá atuar suas “capacidades  naturais”(EE 20), sobretudo as clássicas “faculdades da alma” (EE 127),  “memória, intelecto e vontade” (EE 234). A meditação com as três  potências, presente na primeira semana (EE 45,50-52) trata delas  diretamente. Elas prosseguirão atuantes e participantes durante todo o  percurso dos Exercícios.

O termo “todo” é um dos mais presentes  dos Exercícios. Segundo Inácio, o exercitante modelo è aquele que “é  mais livre e deseja em tudo tirar algum proveito” (EE 20). Desde o  início se pede que o exercitante entre nos Exercícios “com grande ânimo e  liberalidade para com seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe todo o seu  querer e liberdade” (EE 5).

Inácio é consciente que não é nada  fácil articular na ordem prática “natureza” e “graça” mas, não obstante,  ele não atenua nenhuma das expressões, que fizeram com que fosse  tachado de voluntarista. Ele exigirá ânimos em tensão contínua. Os seus  Exercícios podem ser considerados como um desenrolar que parte da  anotação quinta, que assinala a disposição prévia fundamental  e a  oração “Tomai, Senhor, e recebei”, cume da entrega total. E mesmo ao  chegar ao fim de todo o processo, a pessoa não deve somente se contentar  em deixar a Nosso Criador e Senhor dispor de tudo o que é, mas deve ter  a coragem de “oferecer tudo a Ele”[3].

Não nos é permitido  retroceder diante de uma linguagem exigente e até mesmo heroica:  combates, assaltos (EE 327), batalhas, ofensivas (EE 12,13), defesas (EE  327), conquistas (EE 93,95), bandeiras, inimigos mortais, supremos  capitães (EE 136), derrotas, vitórias (EE 13), são termos que se repetem  todo dia e a todo momento durante os Exercícios.

Ao mesmo tempo,  Inácio pretende destacar que é sob a ação do Espírito Santo que o  exercitante descobre, progressivamente, o seu caminho próprio, designado  por Deus para ele. O Espírito Santo é o ator principal na experiência  inaciana. O Pe. Géza descreve assim a presença e atuação do Espírito no  exercitante:

“Os Exercícios Espirituais são, no seu conjunto  orgânico, uma pedagogia sobrenatural na qual o Espírito instrui, move e  nutre o exercitante, orientando-o na direção de uma vida divina sempre  mais florescente. O crescimento na graça ultrapassa absolutamente as  exigências e forças naturais do homem: nem a inteligência nem a vontade,  pelo esforço próprio, podem elevar o exercitante à esfera luminosa da  graça. Só o Espírito Santo è capaz de introduzir na comunhão com o Deus  Vivo, por meio da inserção progressiva em Jesus Cristo, comunicando-lhe  uma satisfação espiritual interna”[4].

Segundo Santo Inácio, tudo  que existe de bom neste mundo provém de Deus. A obra de santificação  toca antes de tudo a Deus. Deus Nosso Senhor entra na alma e sai dela,  move-a e atrai a si, inflamada de amor, segundo lhe agrada (EE 330).  Este é o caráter distintivo da sua ação!

É próprio de Deus  comunicar-se à alma devota, inflamá-la no seu amor e louvor, dispô-la na  via do maior serviço (EE 15). Deus continuamente assiste à alma com o  seu auxílio e distribui as graças segundo o seu beneplácito[5]. Em uma  palavra, segundo o autor dos Exercícios, neles ou fora deles, tudo o que  é bom é dom e graça de Deus, Nosso Senhor (EE 322) e é sua tática  divina o dialogar com a alma de tal modo que a pessoa seja consciente  plenamente (EE 25) que os dons e graças divinas não se devem de modo  algum ao trabalho ascético da alma (EE 322).

O método inaciano  conta com a graça de Deus, busca-a incessantemente, tem como norma a  máxima fidelidade à graça de Deus e se reduz na prática em dispor o  cristão para que possa receber os dons divinos.

A concepção  inaciana da graça é dinâmica: ele está mais interessado nos seus efeitos  práticos na alma, isto é, como Deus vai santificando as almas[6]. O  santo estabelece como pressuposto a abundância desses dons para avançar  pelo áspero caminho da santidade. Sem estes dons, a alma facilmente não  terá forças para o caminho. Inácio nas suas cartas fala sempre de como o  Senhor concede graças de forma “abundante”, “muito abundante”, “suma e  abundante”, “copiosa”, “muito especial”, “inestimável”. Esta  superabundância se reflete em uma outra dimensão afim, a saber, na  continuidade com que o Senhor vai distribuindo estes favores celestiais:  concede-os “continuamente”, “sempre”, “perpetuamente”.

Inácio,  com isso, quer infundir na alma a confiança de ter sido escolhida por  Deus à santidade e lhe assegurar que uma consequência deste ter sido  escolhida por Deus é experimentar essa profusão especial de graças  abundantes que “Nosso Senhor, por sua infinita Bondade, concede  normalmente”[7]. Para entender esta posição inaciana é preciso levar em  consideração o seu grande apreço pela Providência divina: Ele está  seguro de que Deus o escolheu para colaborar à realização de um plano  determinado. E o desígnio divino não pode falhar: “A minha esperança no  Senhor nosso não será frustrada se sua graça divina cooperar”[8]. Eis o  fundamento da confiança inaciana: somos criaturas de Deus, temos a Ele  como nosso Criador e Senhor. Escutemos suas palavras: “Creio e espero em  Nosso Senhor, sem poder duvidar, que pela sua infinita e suma Bondade  … Ele se dignará em nos dar sua graça costumeira… a fim de que  sempre possamos caminhar no seu serviço, louvor e glória”[9].

Um  outro aspecto característico da concepção inaciana da graça divina é que  ela se realiza na alma em um desenvolvimento vital, em um aumento  crescente[10]. Inácio não se cansa de repetir que Deus concede esta  graça “em tudo”[11]: assim, fala de “graça inteira”, “inteiro favor e  auxílio”, “graça realizada (cumplida gracia), expressão com a qual ele  costuma concluir suas cartas. Podemos, pois, afirmar que os Exercícios  contam ao mesmo tempo totalmente com o esforço pessoal e inteiramente  com a ação da graça.

Inácio concede uma enorme importância ao  esforço natural que consiste no uso dos meios que Deus concede aos  homens em vista do seu fim. Esse uso manifesta a vontade do homem, seu  desejo sincero – “Aquilo que quero”- de responder efetivamente aos  apelos divinos da criação, da redenção, da fé e do amor. Por outro lado,  Inácio coloca toda sua confiança em Deus, autor de cada dom, graça e  ajuda indispensáveis à toda resposta livre do ser humano. Inácio exige  todo o esforço pessoal que o homem possa fornecer, mas conta  verdadeiramente com a graça de Deus[12].

Mística a ascética se  conjugam na espiritualidade inaciana. Só podemos “encontrar” se  “buscamos com diligência”(EE 20), pondo em ação os meios aptos (EE 89) e  dispondo a alma (EE 1,7,18,213).

É preciso sem dúvida exaltar a  graça: tudo vem de Deus, mas com uma submissão ativa da liberdade, a  qual igualmente provém de Deus (EE 234). “O próprio Criador e Senhor se  comunica à sua alma” se esta é devota e “busca a vontade divina” (EE  15).

Ao concluir os Exercícios, diz-se ao Senhor: “Tomai, Senhor e  recebei…”, pedindo-lhe que disponha de tudo e acrescentando: “Dá-me o  teu amor e a tua graça, que isso me basta”(EE 234). É a total  disponibilidade de quem tudo espera de Deus[13]. Em Inácio não  encontramos nenhuma antinomia entre o agir de Deus e do homem, que se  dispõe a receber os dons de Deus e a ação de Deus, quel he concede tais  dons.

Sempre o que vem primeiro é a presença radical da graça de  Deus. Inácio não se cansa de insistir com o exercitante que, em todo  momento dos Exercícios, peça a graça (EE 48) e nos colóquios peça à  Virgem que interceda junto ao seu Filho para obter a graça e ao Filho  para obtê-la do Pai.  Neste movimento se percebe como só ao Pai pertence  conceder a graça: Ele è a fonte primária. E Deus quer conceder estas  graças abundantemente. Mas nós devemos nos esforçar:

“Por amor de  Deus N.S., esforçamo-nos nele, pois lhe devemos tanto: e muito mais  cedo nos cansamos de receber os seus dons do que Ele a dá-los a nós.  Agrade a Nossa Senhora interpor-se entre nós pecadores e seu Filho e  Senhor e obter-nos a graça que nossos espíritos fracos e tristes possam  ser transformados, com nosso fatigoso esforço, em fortes e alegres para  seu louvor(Carta a Inês Pascal – 6 de dezembro de 1524 – Epp I, 71-73).

Essa  forte convicção de Inácio se revela também quando ele redige as  Constituições da Companhia de Jesus. Ele escreve no Proêmio: “A suave  disposição da Providência exige a cooperação das suas criaturas” (Const.  134). E o que vale para todo o corpo da Companhia de Jesus vale ainda  para cada um dos seus membros e para todos os que querem ser homens e  mulheres espirituais: “É preciso colaborar com engenhosidade e  diligência com a graça de Deus”[14].

[1]EE 24, 48, 55, 65, 91, 104, 139, 152, 193, 203, 221, 233.

[2] Cf. Joseph THOMAS, Le Secret des Jésuites, 98.

[3] Ángel TEJERINA, Deseo, atención y docilidad a las gracias y dones divinos, Miscelánea Comillas 26 (1956)135.

[4] Géza KOVECSES (ed.), Exercícios Espirituais, Porto Alegre 1966, 15, nota 1.

[5] Ángel TEJERINA, Deseo, atención y docilidad a las gracias y dones divinos, 139-140.

[6]  Ignacio IPARRAGUIRRE, Armonía sobrenatural de la acción de Dios y del  hombre en San Ignacio de Loyola. Estudios Eclesiásticos 30 (1956) 344.

[7] Epp. Ign. I, 339.

[8] Epp. Ign. I, 148.

[9] Epp. Ign. I, 244.

[10]  Ignacio IPARRAGUIRRE, Armonía sobrenatural de la acción de Dios y del  hombre en San Ignacio de Loyola, 347. Cf. Epp. Ign. IX, 552, 235; VIII,  532; IX, 475; I, 634.

[11]Epp. Ign. IV, 94; IX, 550.

[12]  Isso aparece em muitas de suas cartas, como por exemplo, A Juan Luis  González de Villasimplez, Epp V,488-489; A Teresa Rejadell, Epp I,  99-107.

[13] Cf. Jacques LEWIS, Conocimiento de los Ejercicios Espirituales de San Ignacio, Sal Terrae, Santander, 108.

[14] Carta aos estudantes jesuítas de Coimbra de 7 de maio de 1547 – Epp I, 495-510.

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