A oração do discípulo
Reflexão sobre a liturgia do domingo
Johan Konings*
1ª leitura: (Gn 18,20-32) A oração de Abraão por Sodoma e Gomorra – O pecado de Sodoma e Gomorra clama ao céu, mas Deus não pode julgar conforme os muitos injustos, porém, deve poupar a cidade por causa de poucos justos: é o que lhe pede Abraão. É uma questão de honra para Deus. O Juiz do mundo (Gn 18,25) é também o amigo, o Pai (Lc 11,8). Se poucos justos lhe são suficientes (embora não os houvesse em Sodoma) para salvar muitos, a vida de um justo, seu Filho, salvará a todos. * Cf. Ex 32,11-14; Jr 5,1; Ez 22,30; Am 7,1-8; Jr 7,16; Ez 9,8; 22,30; Rm 3,4-6.23-26.
2ª leitura: (Cl 2,12-14) Nossas dívidas são saldadas por Cristo – O “sacramento” (sinal de pertença a Deus) do A.T. era a circuncisão. Jesus se lhe submeteu, como a toda a Lei (Gl 4,4-5), mas assumiu também toda a condição humana e a sepultou consigo na sua morte, para criar o Homem Novo na ressurreição. O que acontece a Cristo, acontece para nós: no batismo somos co-ressuscitados com Cristo. “Com ele” somos agora livres. * Cf. Rm 6,4; 8,34; Ef 1,19-20; 2,1-6.14-15.
Evangelho: (Lc 11,1-13) A oração do cristão – O fato e o modo de Jesus rezar provoca o pedido: “Ensina-nos a rezar”. Jesus dá aos discípulos o Pai-Nosso como protótipo da oração cristã. A versão de Lc é mais breve do que a de Mt 6,9-13. Mt tem 7 pedidos, Lc 5. Central está o pedido do pão de cada dia. Antes disso, se reza pela glorificação de Deus e a vinda de seu Reino; e depois, pelo perdão do pecado e a proteção contra a tentação. Quem rezar assim com sinceridade, é discípulo de Jesus. – Lc acrescenta 2 sentenças de Jesus sobre a oração de pedido (11,5-8.9-13). Deus é nosso Pai. Ele deseja comunicar suas dádivas, especialmente, seu Espírito, força a ânimo de nosso existir. * 11,1-4 cf. Mt 6,9-13 * 11,5-8 cf. Lc 18,1-18 * 11,9-13 cf. Mt 7,7-11; Jo 14,13-14; 16,23-27.
Pessoas muito racionalistas experimentam geralmente dificuldade quanto à oração de súplica. Acham bom rezar para adorar ou agradecer, pois reconhecem que a vida é um dom e que existe um ser transcendente e perfeito, que se chama Deus. Mas pedir que este ser se ocupe com nosso dia-a-dia lhes parece metafisicamente ingênuo e praticamente pouco atraente, pois torna Deus muito familiar. Ora, aquele que sustenta todo ser, também não sustenta nosso dia-a-dia? Ou será que as poucas leis físicas, psicológicas, econômicas e sociológicas que conhecemos são realmente tão abrangentes que não sobre mais espaço para Deus? (Em vez de pensar que estas leis são uma parte do sustento que ele nos fornece em cada momento.)
Seja como for, Jesus nos ensinou a pedir e a suplicar, até com insistência. Fala de uma viúva que pede, pede até cansar o juiz; de um vizinho que bate, à noite, até que o dono se levanta para se ver livre dele (evangelho). Faz pensar em Abraão, que, ao rezar por Sodoma e Gomorra (1ª leitura), lê a lição a Deus: “Não podes perder os justos com os injustos, é uma questão de honra!” E Deus atende. “Cada vez que te invoquei, me deste ouvido”, reza o Sl 138[137] (salmo responsorial).
A oração de Abraão, como também a da viúva e a do vizinho, nos ensinam uma coisa importante: pedem coisas com que Deus se possa comprometer. Parece que pedem a Deus o que, no fundo, ele mesmo deseja. Esse é o segredo da oração eficiente (além de nossa insistência). Por isso, Jesus ensina a seus discípulos, e a todos nós, rezar primeiro para que Deus encontre reconhecimento e seu Reino venha (Mt 6,10 explicita: “Tua vontade seja feita”). Dentro deste quadro de referências, podemos e devemos rezar por nosso pão de cada dia, por perdão (pois somos eternos devedores), por ficar incólumes na tentação. Devemos rezar por isso, com insistência, não tanto porque Deus não soubesse o que precisamos, mas para nos abrirmos para o que ele nos que dar. Pedindo, a gente se convence mais a si mesmo do que a Deus. Pedir é cultivar nossa fé, nossa confiança filial, é deixar crescer Deus como nosso Pai, em nossa consciência e em toda a nossa vida. É voltar a ser criança – condição para entrar no Reino (cf. Lc 18,17). É por isso que os intelectuais tão dificilmente pedem.
Com estas considerações não queremos justificar a oração que reduz Deus a um quebra-galho ou tapa-buraco, às vezes até para causas que não condizem com seu reino (para um bom negócio… pouco importa que outra pessoa fique prejudicada). Queremos revalorizar a oração mediadora, em que minha confiança filial em Deus me leva a extravasar diante de Deus aquilo que habita meu coração: o irmão, o próximo a quem eu quero bem, mas que eu velo em dificuldade. Como Abraão pelos habitantes de Sodoma. Não é absurdo. Se o mundo não é feito somente com as leis físicas, psicológicas e sociológicas que estão nos manuais, mas com o mistério da vida, não há dúvida de que a preocupação amorosa, que extravasamos até diante de Deus, será operante, pela graça daquele mesmo que sustenta toda a vida.
“Ninguém salva a ninguém”. Será? Ninguém é salvo se não quer. Mas, em Cristo, existe uma comunhão de vida entre aqueles que buscam a fonte da vida, que é Deus. Esta comunhão de vida faz com que Cristo nos redima (2ª leitura). Desde que participemos da vida que ele viveu (o que é significado pelo batismo, imersão na sua morte, para que ressuscitemos com ele para uma vida nova), podemos dizer que a santidade de Cristo salda nossas dívidas e que sua morte por amor supre nossa falta de amor (com a condição de nos arrependermos). Como nós mesmos perdoamos alguém a pedido de uma pessoa amiga (pai, mãe, irmão…), assim nossa comunhão (amizade) com Cristo vale para nos restabelecer na amizade de Deus. E também nossa oração de intervenção junto a Deus será eficaz.
Rezar e pedir
Certos cristãos, julgando-se esclarecidos, acham as orações de nosso povo muito egoístas, porque são quase sempre orações de pedido. Ora, as leituras de hoje sublinham a importância da petição. Abraão com seus incansáveis pedidos quase salvou as cidades de Sodoma e Gomorra. Infelizmente, as cidades eram ruins demais (1ª leitura). Jesus, por seu lado, ensina aos discípulos o Pai Nosso, uma oração de pedido (evangelho). O Pai Nosso pede inicialmente que a vontade de Deus seja feita. Ora, uma vez que rezamos em harmonia com a vontade e o desejo de Deus, podemos pedir bastante. Jesus até compara este modo de rezar com um alguém que tira o vizinho da cama para pedir um pão para um hóspede inesperado… Parece ensinar-nos a vencer Deus no cansaço! E, no fundo, Deus gosta de dar-nos suas dádivas boas, seu espírito, pois mesmo nós – que somos ruins – gostamos de dar coisa boa aos filhos.
A oração de petição não é uma forma de oração mais egoísta que a meditação, a louvação, o agradecimento, a adoração… Na verdade, agradecer é a outra face do pedir. Quem agradece, gostou. Por que não pedir então? É reconhecer a bondade do doador! Como o frei que, depois de lauto almoço na casa de uma benfeitora, testemunhou sua gratidão com estas palavras: “Senhora, não sei como agradecer… será que posso repetir aquela gostosa sobremesa?”
Conforme o espírito do Pai-Nosso devemos pedir antes de tudo a realização daquilo que Deus deseja: sua vontade, seu Reino. Ora, uma vez assentada esta base, pode-se pedir – com toda a simplicidade – o pão de cada dia, saúde, vida e todos os demais dons que Deus nos prepara. Inclusive, o perdão de nossas faltas. Só não se deve pedir a Deus o que Deus não pode desejar: a satisfação de nosso egoísmo. E sempre se deve lembrar que Deus sabe melhor do que nós o que nos convém. Podemos insistir naquilo que achamos sinceramente nosso bem… mas Deus sabe melhor.
É importante pedirmos. Compromete! Depois de ter pedido, a gente já não pode dizer: “Não pedi!” Comprometemo-nos com Deus e com aquilo que pedimos. Não é como no supermercado, onde você entra, olha e sai sem comprar. É como no armazém da esquina, onde você pede o que deseja e, caso tiver, você compra. Assim as preces dos fiéis, na celebração da comunidade, devem ter sentido de compromisso: devemos querer mesmo que elas se realizem, e oferecermo-nos a Deus para colaborar na realização daquilo que pedimos. Pedir é comprometer-se. Se pedimos a Deus saúde, não é para gozar egoisticamente a vida, mas para servir melhor. Se pedimos paz, não é para sermos deixadas em paz, mas para dedicar-nos à comunhão fraterna. Se pedimos por nossos irmãos e nossas irmãs mais pobres, é porque queremos ajudá-los efetivamente. Importa saber como pedimos (cf. Tg 4,3).
Dom total