O único necessário
Reflexão sobre a liturgia do domingo
1ª leitura: (Gn 18,1-10a) A hospitalidade de Abraão e a promessa de Deus ?” Sob a aparência de 3 viageiros, Deus apresenta-se ?incógnito? a Abraão, que desempenha toda a hospitalidade tão apreciada no Oriente. Mas o acento desliza da hospitalidade de Abraão para a promessa de Deus. Abraão não perguntou pela identidade de seus hóspedes. Agiu por gratuita bondade. Com a mesma gratuidade Deus lhe concede o que era estimado impossível: um filho do seio de Sara. ?” Deus passa por nossa vida, e nós devemos fazê-lo entrar, pois, senão, nossa vida fica vazia. Deus vem como um necessitado, um viajante, e nossa gratuita bondade deve estar pronta para acolhê-lo no momento imprevisto. * Cf. Gn 15,3-5; 17,15-21; Hb 13,2; Rm 9,9.
2ª leitura: (Cl 1,24-28): A manifestação do mistério de Cristo no Apóstolo ?” Servir a Cristo é participar de seu sofrimento. No seu sofrimento, Paulo vê confirmada sua comunhão com Cristo; e isso lhe é uma alegria. Quer revelar o ?mistério de Deus? ?” que é Cristo ?” por sua vida. Cristo é a ?esperança da glória?. ?Cristo no meio de nós? (1,27) não é um belo pensamento, mas uma força que nos impele ao encontro de nossos irmãos. Ele é, em nós, a esperança, a impaciência do Dia que há de manifestar plenamente o que ele é e o que nós seremos nele. * 1,24-25 cf. Ef 3,1-13; 2Cor 7,4; 12,10 * 1,26-27 cf. Rm 16,25-26; Ef 2,13-22; 1Tm 1,1 * 1,28 cf. Ef 4,13.
Evangelho: (Lc 10,38-42) Marta e Maria: o único necessário ?” Quem acolhe um hóspede parece estar dando algo, mas pode ser que, na realidade, esteja recebendo. Era o caso de Abraão (1ª leitura) e muito mais ainda de Marta e Maria. Hospedar e cuidar é bom, mais fundamental, porém, é acolher o dom que é a palavra de Jesus. Ele não veio para se fazer servir, mas para servir (Mt 20,28): serve com sua palavra, com sua vida inteira. Jesus é inteiramente palavra, no seu dizer, no seu fazer, no seu sofrer. Acolher esta palavra é o único necessário. * Cf. Jo 11,1; 12,1-3; Jo 6,27.
O ativismo não data deste século. É uma doença que espreita a humanidade desde sempre. Jesus, às vezes um tanto irreverente para com seus anfitriões (cf. Lc 13,27ss), aproveita as intensas ocupações da Dona Marta, sua anfitriã, para falar do assunto (evangelho). Pois ela deseja que Dona Maria, imersa na escuta das palavras de Jesus, interrompa sua audiência e a ajude para preparar a comida. Mas, por que preparar comida, se não se sabe para quê? Se a gente não se abre para acolher a mensagem, para que acolher o mensageiro? Um bom anfitrião procura servir o melhor possível, mas se ele não faz tempo para se abastecer, que poderá oferecer? Um montão de coisas, mas não aquilo que serve. ?Marta, Marta, tu te ocupas com muitas coisas; uma só, porém, é realmente indispensável…?. Não diz o quê. Só diz que Maria escolheu a parte certa: escutar Jesus. Muito mais importante do que acolher Jesus numa casa bem arrumada, a uma mesa bem provida, é acolhê-lo, com suas palavras, no coração. Então saberemos preparar a mesa do modo certo.
Marta dá muita importância àquilo que ela está fazendo, e pouca àquilo que ela recebe de Jesus. A 1ª leitura mostra que, quando se está oferecendo hospitalidade, na realidade está recebendo. A hospitalidade que Abraão generosa e gratuitamente oferece a três homens, perto do carvalho de Mamré, transforma-se num receber; recebe a coisa que mais deseja: um filho de sua mulher legítima, Sara. Talvez por isso se diga que a hospitalidade é ?receber? uma pessoa: o hóspede é um dom para nós.
A verdadeira hospitalidade não é preparar muitas coisas, mas acolher o dom que é a pessoa. Receber as pessoas com atenção, dar-lhes audiência, pode ser uma ocasião para receber a única coisa verdadeiramente necessária, a palavra de Deus: sua promessa (no caso de Abraão), seu ensinamento (no caso de Maria). Deus vem no ser humano. Paulo (2ª leitura) sabe desta união de Deus e Cristo com o homem que lhes pertence. Seu sofrimento, ele o considera como a complementação, no seu próprio corpo, do sofrimento de Cristo. Ele leva em si o mistério escondido desde a eternidade, a realidade que só conhece quem dela participa, a esperança da glória, ?Cristo em vós?. Na comunidade dos fiéis, especialmente, desses pagãos dos quais Paulo se tornou o apóstolo, está presente aquele que assume todo o sentido de nossa vida e da criação toda (Cl 1,15-20, cf. dom. pass.). Para que esses fiéis sejam levados à perfeição, Paulo oferece sua vida.
O ativismo, mesmo a serviço dos outros, corre o perigo de ser um serviço a si mesmo: autoafirmação à custa do ?objeto? de nossa caridade. A superação do ativismo consiste em ver o mistério de Deus nas pessoas, assim como Maria o enxergou em Jesus, certamente, o porta-voz de Deus, o portador das ?palavras de vida eterna? (cf. Jo 6,68). Mas podemos também enxergar no homem o destinatário do carinho de Deus: é também uma maneira de ver Deus nele. A verdadeira contemplação não é uma fuga em pensamentos aéreos, mas aquele realismo superior que nos leva a ver Deus no homem e o homem em Deus. Esta contemplação é também o fundamento da verdadeira práxis da fé, que consiste, precisamente, em tratar o homem como filho e representante de Deus. Para isso, o centro de nossa preocupação não deve ser nossa atividade, mas a pessoa humana que nos é dada e que nós ?recebemos? como um dom da parte de Deus.
O “importante” e o necessário
Um grande mal em nossa sociedade, e também na Igreja, é o ativismo, a falta de disposição para aprofundar o essencial, sob o pretexto de tarefas urgentes.
Neste domingo, a 1ª leitura nos mostra a virtude da hospitalidade na figura de Abraão. Deus ?” que nos anjos se tornou seu hóspede ?” o recompensa com a promessa de um filho. O evangelho, porém, parece contradizer esta lição: Jesus dá a impressão de valorizar mais a presença passiva de Maria, que fica escutando-o, do que a preocupação de Marta em bem recebê-lo. Ou será que o jeito certo de recebê-lo é o de Maria: escutar sua palavra?
Jesus observa a Marta que ela anda ocupada e preocupada com muitas coisas, enquanto uma só é necessária. Essa observação não é uma recusa da hospitalidade, mas indica uma escala de valores: a melhor parte é a que Maria escolheu! O que esta faz é fundamental e indispensável: escutar. O resto (as correrias pastorais, as reuniões) é importante, mas deve ter fundamento no escutar. Jesus censura Marta não porque ela cuida da cozinha, mas porque quer tirar Maria do escutar, para fazê-la entrar no ritmo das suas próprias ocupações. Marta não conhecia a escala de valores de Jesus.
Paulo, na 2ª leitura, pode ser um exemplo. Ele passou pela ?passividade? do sofrimento, assumindo no seu corpo àquilo que o sofrimento de Cristo deixou para ele. Foi desta identificação profunda com Cristo que ele tirou a força para seu surpreendente apostolado.
Gente ocupada é o que menos falta. Mas sabemos muito bem que toda essa ocupação não gira em torno daquilo que é fundamental. Dá até pena ver certas pessoas complicarem sua vida com mil coisas de que dizem que simplificam a vida. Ao lado delas encontramos o pobre, o lavrador, o índio, vivendo uma vida simples, mas com muito mais conteúdo e sobretudo com um coração sensível e solidário.
Importa acolher (a Deus, a Jesus, aos outros) em primeiro lugar no coração. Só então a demais atuação terá sentido. Isso vale na vida pessoal e também na vida comunitária. Comunidades que giram exclusivamente em torno de preocupações e reivindicações materiais acabam esvaziando-se, caem em brigas de personalismo e ambição. Mas comunidades que primeiro acolhem com carinho a palavra de Jesus num coração disposto saberão desenvolver os projetos certos para pôr a palavra de Jesus em prática.
?Buscai primeiro o Reino de Deus…?
*Pe. Johan Konings SJ: Teólogo, doutor em exegese bíblica. Professor da FAJE. Autor do livro “Liturgia Dominical”, Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras obras, coordenou a tradução da “Bíblia Ecumênica” TEB e a tradução da “Bíblia Sagrada” da CNBB.