Eucaristia: Dom de Cristo à Comunidade
Reflexão sobre a liturgia do Corpus Christi
1ª Leitura: (Gn 14,18-20) Melquisedec oferece pão e vinho – Melquisedec, rei de Salém (Jerusalém), é sacerdote do Deus altíssimo (Gn 13; Sl 110 [109], 4;cf. Hb 7,1-9). Conhece Deus como criador do céu e da terra. Oferece-lhe os mais nobres dons: pão e vinho, o sustento cotidiano do homem; depois, os oferece a Abraão, seu hóspede. Como rei e sacerdote, Melquisedec prefigura Cristo; sendo não-judeu, significa a salvação universal; seus dons de pão e vinho recebem seu sentido pleno na ceia e no sacrifício de Cristo e da Igreja, o sacrifício universal, “de onde nasce o sol até o poente” (cf. Ml, 1,11).
2ª Leitura: (1Cor 11,23-26) Memorial da morte de Cristo – Mais antigo testemunho da celebração da Última Ceia, mencionado por Paulo ao ensejo dos abusos dos coríntios nesta celebração (humilhação dos membros pobres da comunidade; 11,17-22). É impossível ter comunhão com o Cristo sacrificado, enquanto desprezamos seus irmãos. O sacramento nos lembra o Senhor morto e ressuscitado, até que ele venha; então, nos julgará conforme nossa doação aos irmãos, prioritariamente, aos mais humildes. Se não respeitamos seu “corpo” que é a comunidade, a participação eucarística de seu corpo e sangue doados na cruz significa nossa condenação. *Cf. Lc 22,14-20; 1Cor 10,16-17; Ex 12,14; 24,8; Hb 8,6-13; Jr 31,31).
Evangelho: (Lc 9,11b-17) Jesus sacia as multidões – Saciando a multidão, Jesus mostra duas qualidades divinas: poder e bondade. O Reino de Deus está presente. Leva à plenitude os gestos de Deus no A.T. (Ex 16; 2Rs 4,42-44). Menos ainda que no deserto, Deus deixa seu povo sem pão. Ao descreve o sinal do pão, Lc pensou na Eucaristia (9,16); os discípulos (os ministros da Igreja) distribuem o pão sobre o qual Jesus pronunciou a “eucaristia” (ação de graças), na Última Ceia (cf. Lc 22,19; 24,29-30; 24,35) *Cf. Mt 14,13-21; Mc 6,30-44; Jo 6,1-13; Is 25,6.
Neste ano “lucano”, vale a pena considerar o evangelho de Corpus Christi (a multiplicação dos pães) sob o ângulo de Lucas. Quando se compara seu texto com o paralelo de Mc, nota-se uma extrema simplificação. Em Mc, a multiplicação do pão está no fim da missão dos discípulos, que inclui a narração retrospectiva da morte de João Batista, ensejada pela opinião de Herodes sobre Jesus (Mc 6,14-29). Lc conserva a pergunta de Herodes, aliás, numa forma mais acentuada que em Mc; enquanto em Mc Herodes fica duvidando se Jesus seria João voltado à vida, em Lc 6,9 a pergunta é: “Quem é este, de quem eu ouço tantas coisas?” E omitindo a retrospectiva da morte de João (mencionada em 3,19-20), Lc traz imediatamente a multiplicação do pão (6,10-17). Depois, omite toda a matéria de Mc referente à segunda multiplicação do pão (para que duas vezes contar a mesma história?) e traz imediatamente, como contrapeso da pergunta de Herodes, a pergunta de Jesus: “Quem dizem os homens que eu sou?”, com a resposta de Pedro: “Tu és o Messias de Deus” (9,18-22; cf. Mc 8,27-29). Assim, para Lc, a multiplicação dos pães sugere a resposta à pergunta de Herodes (“Quem é este?”), no sentido de que Jesus é o Messias (como diz Pedro). Lc apresenta a multiplicação dos pães como um sinal messiânico; a própria situação do acontecimento era messiânica: Jesus estava falando do Reino de Deus (9,11).
Ora, esse sinal messiânico tem, em Lc como nos outros evangelhos, feições eclesiais. Todos os evangelistas acentuam a maneira “eucarística” com que o pão é dado à multidão: “Tomando os cinco pães… levantou os olhos para o céu, pronunciou a bênção sobre os pães e repartiu-os e deu-os aos discípulos, para que os entregassem à multidão” (9, 16). Parecem as palavras da Consagração. A eucaristia da Igreja é a plenitude daquilo que Jesus “assinalou” na multiplicação do pão. Mas essa plenitude passa por um momento transformador: a cruz de Cristo. Isso, no-lo ensina a 2ª leitura, relato paulino (e lucano) da instituição da Ceia: Jesus dando ao pão e ao vinho da mesa pascal o sentido de serem seu corpo e sangue dados por nós no sacrifício da cruz. O verdadeiro messianismo de Cristo, a verdadeira libertação, não ocorreu lá nas colinas do mar da Galileia, mediante a saciação da forme, mas na colina do Gólgota, quando não o pão matéria, mas a vida justa dada até a morte é que liberta os homens. O pão pode ser disso o sinal muito significativo, e quem sabe, necessário, pois o próprio Justo e Servo escolheu este sinal.
Pão e vinho – comida ao mesmo templo simples e festiva, cotidiana e solene –, foi o que o misterioso rei e sacerdote do Altíssimo (portanto, do Deus de Abrão), Melquisedec, ofereceu como sacrifício e ágape quando do encontro com Abraão (1ª leitura). Não sacrifícios sangrentos, que podem sugerir algum efeito mágico, mas os dons de Deus para a vida cotidiana. Dom que Deus deu à as Igreja com um sentido bem mais rico do que Melquisedec podia suspeitar!
Do dom de Deus, Mequisedec fez sua oferta a Deus. Nós também oferecemos a Deus o dom que ele nos deu: o pão e o Messias-Servo, que o pão significa. Estabelece-se assim a comunhão que o próprio pão e vinho sugerem (cf. Lc 22,15-20. No pão que sacia a família humana oferecemos a Deus nossa comunhão com seu dom por excelência, Jesus, dado por nós. Mas então e inadmissível que a comunidade cristã deixe seus membros sem o pão de cada dia. Isso é um pecado contra o “corpo do Senhor”, nos ensina Paulo (2ª leitura), (“corpo” tem sentido do Cristo presente na Eucaristia, mas também, da comunidade eclesial). Ora, isso aí nos convida a um sério exame de consciência! Será possível ter comunhão no pão que é o corpo dado por todos, se não nos damos mutuamente o pão de cada dia, alimento do corpo que é a comunidade. O cristianismo não é um espiritualismo, uma fuga em belas ideias sobre Deus. O Cristianismo é a religião da Encarnação. Ser Messias, para Jesus, significa dar pão em sinal do dom de si mesmo. A Igreja, trilhando o caminho do Cristo, não pode deixar de fazer a mesma coisa. “Vós mesmos, dai-lhes de comer” (Lc 9,13).
Eucaristia, banquete universal
O distintivo dos primeiros cristão era a refeição comunitária (cf. At 2,32-34 etc.). O gesto de Jesus reunindo o povo no deserto e providenciando milagrosamente pão para todos (evangelho) é um símbolo da Igreja. Jesus quis ficar presente na Igreja no sinal da refeição aberta a todos que aderissem a ele – muito diferente daqueles banquetes onde geralmente só se convidam as pessoas da mesma classe, ou os que podem pagar…
A multiplicação dos pães é sinal messiânico, sinal dos tempos em que tudo acontecerá conforme o desejo de Deus, sinal do Reino de Deus: fartura e comunhão. Mas é ainda prefiguração. A refeição à beira do lago da Galileia se tornará completa somente quando Jesus der seu próprio corpo e sangue, na cruz. Então já não será passageira: será uma realidade de uma vez para sempre, no sacramento confiado à Igreja. Este é também o sentido profundo que a Igreja vê no misterioso pão e vinho oferecidos pelo sumo sacerdote Melquisedec, a quem até o pai Abração presta reverência (1ª leitura).
A Eucaristia deve então ser verdadeiro banquete messiânico, sinal dos tempos novos e definitivos, em que as divisões e provações são superadas, na vida da fé em Cristo Jesus. A desigualdade, o escândalo do super-ricos ao lado de pobre morrendo de fome, a marginalização são incompatíveis com a Eucaristia (2ª leitura). Na Eucaristia, Cristo identifica a comida partilhada com sua própria vida e pessoa. O pão repartido se torna presença de Cristo. Onde não se reparte o pão, Cristo não pode estar presente.
Tudo isso dá o que pensar. Na multiplicação dos pães, Jesus não fez deserto pão do céu, como o maná de Moisés. Nem transformou pedras em pão, como lhe sugerira o demônio quando das tentações no deserto. Mas ordenou aos discípulos: “Vós mesmos, dai-lhes de comer”… e o pão não faltou. Porém, se não observarmos esta ordem de Jesus e não dermos de comer aos nossos irmãos, ele também não poderá tornar-se presente em nosso dom. Então, não só o pão, mas Cristo mesmo faltará.
Dom Total