Deus comunica sua intimidade
Reflexão sobre a liturgia da Trindade
1ª leitura: (Pr 8,22-31) A Sabedoria divina existe antes de tudo – O A.T. não conhece a revelação de Deus em três pessoas, mas fala do Deus vivo, que age e fala e que, com seu Espírito, penetra todo o ser e a história da humanidade. “Palavra”, “Espírito”, “Sabedoria” de Deus aparecem, para o pensamento do A.T., como realidades divinas atuantes. Preparam a visão das três pessoas divinas no N.T. – Pr 8 é um grande poema, em que a Sabedoria tem a palavra. Fala de sua origem antes dos tempos (8,22-26), de seu lugar ao lado de Deus na criação (27-30), mas também, ao lado dos homens (31). Paulo identificará o Cristo crucificado com a “força e a sabedoria de Deus” (1Cor 1,23-24). Esta é a plena revelação da Sabedoria de Deus: estar junto aos homens (cf. 8,31) no sofrimento e na doação até o fim. * 8,22-26 cf. Eclo 24,5-10[3-6]; Sb 7,22–8,1; Jo 1,1-3 * 8,27-30 cf. Jó 28,20-28; 38,8-11; Sb 9,9; Sl 104[103],7-9; Cl 1,16-17.
2ª leitura: (Rm 5,1-5) O amor de Deus se derramou em nós – Não por causa de privilégios nossos, mas porque Cristo por nós morreu, somos justos diante de Deus (Rm 4,24-26). Nisso reconhecemos que Deus nos quer salvar e nos amar; por isso esperamos. Que somos capazes de participar de sua vida, é obra de seu Espírito em nós. * 5,1-2 cf. Rm 3,23-25; 8,18-23 * 5,3-4 cf. Tg 1,2-4; 1Pd 4,13,14 * 5,5 cf. Sl 22[21],5-6; Rm 8,14-16; Gl 4,4-6; Ez 36,27; Rm 8,9; 1Cor 3,18; Ef 3,16-19.
Evangelho: (Jo 16,12-15) O Espírito faz reconhecer a manifestação do Pai em Jesus – Enquanto Jesus não é exaltado e o Espírito, derramado, os discípulos não entendem plenamente (2,22; 7,39; 12,16 etc.) A “plena verdade” (16,13) é a manifestação de Deus em Jesus Cristo, na qual o Espírito, depois da morte e ressurreição de Cristo, nos conduz, mostrando a glória dele (16,14). A obra do Espírito é “memória” (14,26 – cf. 6º dom. da Páscoa), mas não só isso: é também penetração no mistério de Deus com vistas ao que há de vir (16,13). A revelação de Deus em Cristo é uma realidade permanente, não apenas um passado. É Pentecostes permanente. * 16,13 cf. Jo 14,6.16-17.26; 16,7; Rm 8,14-16 * 16,15 cf. Jo 17,10; Mt 11,27; Lc 15,31.
Deus é o “mistério”. Isso não significa, estritamente, sua inacessibilidade ou incognoscibilidade. Significa antes que, enquanto “nele nos movemos e existimos” (At 17,28), nossa compreensão não consegue englobá-lo. Por isso, ele se manifesta exatamente naquilo que nos envolve, em primeiro lugar, na insondável sabedoria com que o universo foi feito. Assim, o judaísmo viu na sabedoria de Deus uma realidade preexistente ao próprio universo: a primeira criatura de Deus (1ª leitura). Aos poucos, o que os antigos vagamente vislumbraram articulou-se mais claramente naquele que João chama “a Palavra” (de Deus), Jesus Cristo, que não apenas nos faz ver a maravilha da inteligência divina na Criação, mas nos revela o mais íntimo ser de Deus: seu amor (evangelho) Porém, a revelação de Deus em Jesus Cristo, necessariamente histórica – pois ser amor para homens históricos só é possível de modo histórico –, não desapareceu com Cristo. O Espírito do Pai que animou o Filho permanece conosco e tornou-se para nós sua memória atuante, eterna presença daquele que, no sentido mais pleno pensável, é o “Filho de Deus”.
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É essa a linha que une a 1ª leitura ao evangelho. No meio (2ª leitura) está um texto de Paulo sobre o mistério do amor divino manifestado em Jesus Cristo: Rm 5,1-5. O homem encontra a justificação, ou seja, a aceitação por Deus, na fé em Jesus Cristo: fé que é confiança de vida e adesão comprometida. Entregando-se a Jesus Cristo, a sua palavra e exemplo, o homem cai, por assim dizer, nos braços de Deus. Por isso, até as tribulações enfrentadas por causa do Cristo são uma felicidade, pois nos unem a ele mais ainda. A vida se transforma então em constância que não decepciona, pois já temos as primícias da realização da plenitude: o Espírito que foi derramado em nós. Paulo conhece Cristo somente “no Espírito”. Não o conheceu fisicamente, mas o “vive” pela presença de seu Espírito – presença que é o início da plenitude das promessas de Deus, a “paz” (cf. v. 1).
Na presente liturgia aparece claramente que o mistério da SS. Trindade contempla o que nos ultrapassa: a tríplice realidade da una divindade, do uno Deus-Amor. Parece “incompreensível”, mas não é inacessível. A riqueza da realidade divina, presente em Jesus de Nazaré e em seu Espírito, que anima a história da Igreja como animou também a história salvífica anterior, não se deixa “com-preender” em nossos conceitos lógicos, mas envolve-nos.
Pode-se comparar Deus com o horizonte. A gente nunca o consegue englobar na vista, antes pelo contrário: quanto mais se penetra nele, tanto mais ele se amplia e se aprofunda. Descobrimos tal horizonte, não só na transcendência que fundamenta todo o ser (Deus criador), mas também na existência de Jesus e na atuação do Espírito transcendente (não sujeito a nossas categorias) que nos impulsiona. Penetramos nesse horizonte, e quanto mais nele penetramos, tanto mais se revela como mistério. Não o podemos compreender, mas sim, celebrar.
A partir da presente liturgia pode-se fazer uma meditação sobre a inserção do cristão neste mistério, hoje. Um mistério serve para inserir-se nele (cf. os “mistérios” da antiga Grécia), um horizonte toma sentido quando a gente se deixa envolver nele. Ora, se em Cristo conhecemos o Pai (Jo 16,15a), e se tudo o que se realizou em Cristo, em termos de revelação divina, é atualizado para nós na percepção do momento histórico eclesial (16,13), a verdadeira celebração da tríplice presença de Deus acontece quando, diante da realidade de hoje, rejeitamos os falsos deuses da posse, do poder e do prazer, assumindo o caminho de Cristo, o caminho do amor que fala de Deus, no engajamento proposto pela comunidade eclesial, animada por seu Espírito: o caminho dos pobres, das vítimas dos falsos deuses…
Outra linha de explicitação da liturgia de hoje poderia ser o tema a justificação pela fé, sobretudo por estarmos no ano “lucano” (Lc tem em comum com seu mestre Paulo uma especial atenção pela gratuidade do amor de Deus). O texto de Rm 5,1ss sugere que a justificação gratuita pela fé é o deixar-se envolver na comunhão do amor do Pai e do Filho.
Deus comunica sua intimidade
Para muitas pessoas, a pregação da Igreja a respeito da Trindade é obscurantismo. Para que ofender a inteligência dizendo que Deus é ao mesmo tempo um e três? Tal pergunta é tão precipitada quanto o marido que não tem tempo para escutar sua mulher quando ela lhe abre a complexidade de seu coração. Deus quer manifestar a sua riqueza íntima, mas nós não queremos escutar o Mistério. Preferimos o nível de entendimento de uma maquininha de calcular…
Deus é um só, sempre o mesmo e fiel, mas ele abre seu interior em Jesus de Nazaré, um ser pessoal, livre e autônomo. Deus se dá a conhecer no modo como Jesus, livremente e por decisão própria, nos amou e nos ensinou, sendo para nós palavra de Deus, muito mais do que a sabedoria tão elogiada pelo Antigo Testamento (1ª leitura). E depois que Jesus cumpriu sua missão, perpetua-se para nós a “palavra” que ele tem sido, numa outra realidade pessoal, o Espírito de Deus, a inspiração que, vinda de Deus e de Jesus, invade o nosso coração, a ponto de nos tornar semelhantes a Jesus (2ª leitura). Tanto em Jesus como no Espírito Santo, quem age é Deus mesmo, embora sejam personagens distintas.
Riqueza inesgotável que a Igreja nos aponta para que saibamos onde Deus abre seu íntimo para nós: no seu Filho Jesus e no Espírito de Jesus que nos anima. Lá encontramos Deus, e o encontramos não como bloco de granito, monolítico, fechado, mas como pessoas que se relacionam, tendo cada uma sua própria atuação: o Pai que nos ama e nos chama à vida; o Filho Jesus, que fala do Pai para nós e mostra como é o Pai, sendo bom e fiel até o dom da própria vida na morte da cruz; e o Espírito Santo, que doutro jeito ainda, fica sempre conosco. O Espírito atualiza em nós a memória da vida e das palavras de Jesus e anima a sua Igreja. E todos os três estão unidos e formam uma unidade naquilo que Deus essencialmente é: amor.
Essas reflexões não visam a “compreender” a Trindade como se compreende que 1+1=2! Visam a abrir o mistério de Deus, que é maior que nossa cabeça. Santo Agostinho, ao ver uma criança na praia colocar água do mar num poço na areia, caçoou dela, dizendo que o mar nunca ia caber aí. E a criança respondeu: “Assim também não vai caber na tua cabeça o mistério da Santíssima Trindade”. Pois bem, se não conseguimos colocar o mistério do amor de Deus em nossa cabeça, coloquemos nossa cabeça e nossa vida toda dentro desse mistério!
*Pe. Johan Konings SJ: Teólogo, doutor em exegese bíblica. Professor da FAJE. Autor do livro “Liturgia Dominical”, Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras obras, coordenou a tradução da “Bíblia Ecumênica” TEB e a tradução da “Bíblia Sagrada” da CNBB.