Início da missão profética
Reflexão sobre a liturgia de Pentecostes
Liturgia do domingo
Johan Konings*
1ª leitura: (At 2,1-11) O milagre das línguas – Pentecostes é interpretado como acontecimento escatológico a partir da profecia de Jl 3 (cf. At 2,16-21). Mas, sobretudo, é o cumprimento da palavra do Cristo (Lc 24,49; At 1,4; cf. Jo 14,16-17.26). Passa como um vendaval ao ouvido, como fogo aos olhos; mas permanece como transformação do “pequeno rebanho” em Igreja missionária. Também hoje. A Igreja do Cristo se reconhece pelo espaço que ela dá ao Espírito e pela capacidade de proclamar sua mensagem. * 2,1-4 cf. Mt 3,11; Lc 3,16; Jo 20,22; At 4,31.
2ª leitura: (1Cor 12,3b-7.12-13) Unidade do Espírito na diversidade dos dons – “Jesus é o Senhor” é a confissão que une a Igreja primeva (cf. Fl 2,9-11). E esta confissão só se consegue manter na força do Espírito. Como a unidade da confissão, o Espírito dá também a multiformidade dos serviços na Igreja. Todos que pertencem a Cristo são membros diversos do mesmo Corpo. * 12,3 cf. Rm 10,9; Fl 2,11 * 12,7 cf. At 1,8; 1Cor 12,28-30; Rm 12,6-8; Ef 4,11-13 * 12,12-13 cf. Rm 12,4-5; Ef 4,4-6.
Evangelho: (Jo 20,19-23) Dom do Espírito pelo Cristo ressuscitado – Celebramos a 6ª-feira Santa, Páscoa e Pentecostes em três dias diferentes, mas a realidade é uma só: a “Exaltação” de Cristo na Cruz e na Glória, fonte do Espírito que ele nos dá. No próprio dia da Páscoa, diz Jo, Jesus vem entregar este dom aos seus, com a sua paz e a missão de tirar o pecado do mundo, missão de Jesus mesmo (cf. 1,29.35). O mundo ressuscita com Cristo pelo Espírito dado à Igreja. * 20,19-20 cf. Lc 24,36-43; Jo 14,27; 15,11; 16,22 * 20,21-23 cf. Jo 17,18; Mt 28,19; 16,19; 18,18.
Pentecostes é a plenificação do Mistério pascal: a comunhão com o Ressuscitado só é completa pelo dom do Espírito, que continua em nós a obra do Cristo e sua presença gloriosa. A liturgia de hoje acentua a manifestação histórica do Espírito no milagre de Pentecostes (1ª leitura) e nos carismas da Igreja (2ª leitura), sinais da unidade e paz que o Cristo veio trazer. Isto, porque a pregação dos apóstolos, anunciando o Ressuscitado, supera a divisão de raças e línguas, e porque a diversidade de dons na Igreja serve para a edificação do povo unido, o Corpo do qual Cristo é a cabeça. Ambos estes temas podem alimentar a reflexão de hoje.
No antigo Israel, Pentecostes era uma festa agrícola (primícias da safra, no hemisfério setentrional). Mais tarde, foi relacionada com o evento salvífico central da Aliança mosaica: ganhou o sentido de comemoração da proclamação da Lei no monte Sinai. Tornou-se uma das três grandes festas em que os judeus subiam em romaria a Jerusalém (as outras são Páscoa e Tabernáculos). Foi nesta festa que aconteceu a “explosão” do Espírito Santo, a força que levou os apóstolos a tomarem a palavra e a proclamarem, diante da multidão reunida de todos os cantos do judaísmo, o anúncio (“querigma”) de Jesus Cristo. Seria errado pensar que o Espírito tivesse sido dado naquele momento pela primeira vez. O evangelho (de João) nos ensina que Jesus comunicou o Espírito no próprio dia da Páscoa. O Espírito está sempre aí. Mas foi no dia de Pentecostes que esta realidade se manifestou ao mundo. Por isso, ele aparece em forma de línguas, operando o milagre das línguas e reparando a “confusão babilônica”.
O Espírito leva a proclamar os magnalia Dei em todas as línguas. O conteúdo desta proclamação, já o conhecemos dos domingos anteriores: é o querigma da ressurreição de Jesus Cristo. Novamente, o Sl 104[103] comenta este fato (salmo responsorial).
A 2ª leitura mostra, por assim dizer, a obra “intra-eclesial” do Espírito: a multiformidade dos dons, dentro do mesmo Espírito, como as múltiplas funções em um mesmo corpo. Paulo chama isto de “carismas”, dons da graça de Deus; pois sabemos muito bem que tal unidade na diversidade não é algo que vem de nossa ambição pessoal (que, normalmente, só produz divisão). É o Espírito do amor de Deus que tudo une.
No evangelho encontramos a visão joanina da “exaltação” de Jesus: é a realidade única de sua morte, ressurreição e dom do Espírito, pois sua morte é a obra em que Deus é glorificado, e seu lado aberto é a fonte do Espírito para os fiéis (Jo 7,37-39; 19,31-37; cf. vigília). Assim, no próprio dia da ressurreição, Jesus aparece aos seus para lhes comunicar a sua paz (cf. 14,27) e conceder o dom do Espírito, para tirar o pecado do mundo, ou seja, para que eles continuem sua obra salvadora (cf. 1,29.35).
Este Espírito do Senhor exaltado é o laço do amor divino que nos une, que transforma o mundo em nova criação, sem mancha nem pecado, na qual todos entendem a voz de Deus. É essa a mensagem da liturgia de hoje. O mundo é renovado conforme a obra de Cristo, que nós, no seu Espírito, levamos adiante. Neste sentido, é a festa da Igreja que nasceu do lado aberto do Salvador e manifestou sua missão no dia de Pentecostes. Igreja que nasce, não de organizações e instituições, mas da força graciosa (“carisma”) que Deus infunde no coração e nos lábios. A festa de hoje nos ajuda a entender o que é renovação carismática: não uma avalanche de fenômenos estranhos, mas o espírito do perdão e da unidade que ganha força decisiva na Igreja. O Espírito Santo é a “alma” da Igreja, o calor de nossa fé e de nossa comunhão eclesial. A antiga sequênciaVeni Sancte Spiritus expressa isso maravilhosamente, e seria bom pôr os fiéis, mediante canto ou recitação, novamente em contato com esse rico texto.
A Igreja, por sua unidade no Espírito, no vínculo da paz (Ef 4,3), torna-se sacramento (sinal operante), do perdão, da unidade, da paz no mundo, na medida em que ela o coloca em contato com o senhorio do Cristo pascal, no querigma e na práxis.
Início da missão profética
Pentecostes é o aniversário da Igreja? Sob certo aspecto, sim. A primeira comunidade tinha sido reunida por Jesus durante a sua vida. Mas o que foi tão decisivo na data de Pentecostes, depois de sua morte e ressurreição, é que aí começou a proclamação ao mundo inteiro da Salvação em Jesus Cristo, morto e ressuscitado. Para os antigos judeus, Pentecostes era o aniversário da proclamação da lei no monte Sinai: esta proclamação constituiu, por assim dizer, Israel como povo, deu-lhe uma “constituição”. De modo semelhante, quando os apóstolos proclamam no dia de Pentecostes a salvação em Jesus Cristo, é constituído o novo povo de Deus. Não só Israel, mas todos os povos são agora alcançados, cada um em sua própria língua (1ª leitura).
Até hoje, a Igreja continua procurando alcançar todos os povos, grupos, classes e raças, numa linguagem que os atinja. Não necessariamente na linguagem que lhes agrade! Aos pobres, terá que falar uma linguagem de carinho e animação; aos ricos, uma linguagem provocadora, para descongelar seu coração. Mas, de qualquer modo, a todos ela deverá explicar – na linguagem adequada – que na conversão a Cristo se encontra a salvação.
O verdadeiro milagre das línguas não consiste em dizer “Aleluia” em todas as línguas, mas em falar com clareza para todos os povos, raças e classes. Os diversos dons do Espírito Santo, de que fala a 2ª leitura, servem exatamente para isto: para atingir as pessoas de todas as maneiras, para sermos profetas da Nova Aliança, selada por Cristo em seu próprio sangue e, agora, publicada para o mundo sob o impulso de seu Espírito. Como Moisés e os setenta anciãos no Sinai se tornaram porta-vozes de Deus e da antiga Aliança, assim agora, a partir de Pentecostes, a Igreja deve tornar-se toda profética, denunciando o que está errado e anunciando a salvação que está na fraternidade e na comunhão que Jesus veio instaurar. Assim, o Espírito de Deus renovará, pela Igreja, a face da terra (cf. salmo responsorial).
*Pe. Johan Konings SJ: Teólogo, doutor em exegese bíblica. Professor da FAJE. Autor do livro “Liturgia Dominical”, Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras obras, coordenou a tradução da “Bíblia Ecumênica” TEB e a tradução da “Bíblia Sagrada” da CNBB.