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Onde há amor, Deus aí está!

Onde há amor, Deus aí está!

Reflexão sobre a liturgia do VI Domingo da Páscoa

Johan Konings*

1ª leitura: (At 15,1-2.22-29) Concílio de Jerusalém –  Conversão de Cornélio (At 10), atividade de Paulo e Barnabé (At 13–14),  o delicado problema da jovem Igreja: admitir os pagãos sem que passem  pelo judaísmo (circuncisão, Lei) (15,5). O “Concílio dos Apóstolos” vê  com clareza que não a Lei, mas Cristo é que salva. Todavia, recomenda  certas normas práticas para que não sejam feridas as sensibilidades  específicas dos cristãos vindos do judaísmo; pois é para a fraternidade  que Jesus nos salvou. * 15,1-2 cf. Gl 2,11-14; 5,2; Lv 12,3; Gl 2,1-2 *  15,29 cf. Gn 9,4; Lv 3,17.

2ª leitura: (Ap 21,10-14.22-23) Esplendor da nova Jerusalém –  Na visão do Ap, a nova Jerusalém é, como a Igreja, fundada sobre o  alicerce dos Apóstolos e dos Profetas (A. e N.T.). Ela é totalmente  diferente do mundo que conhecemos agora: ela é santa, repleta de  presença de Deus e do Cordeiro. A esta realidade deve aspirar a História  que fazemos. * 21,10-14 cf. Ez 40,2; Ap 21,2; Is 60,1-2; Ez 48,31-35 *  21,22-23 cf. Jo 2,19-22; Is 60,19-20; 2Cor 3,18.

Evangelho: (Jo 14,23-29) A inabitação de Cristo e de Deus em nós e a “memória” do Espírito – A presença de Cristo e Deus na comunidade (2ª leitura)  vale já, se realizamos em nossa vida a palavra de Cristo. O Espírito  no-la há de lembrar. Como “recordação”, mas também como tarefa, Jesus  nos deixa a paz, antecipação da plenitude e missão no mundo:  comunhão permanente com ele. * 14,23-24 cf. Jo 8,43.47; Ap 3,20; Jo  7,16; 14,10 * 14,25-29 cf. Jo 16,7.13-15; 16,33; Rm 5,1; 1Ts 3,16; Jo  14,1-3.

A nova  Jerusalém é a “morada de Deus com os homens”, dizia-nos a utopia que  escutamos domingo passado. Mas uma utopia serve para mostrar o sentido  da realidade presente. Hoje, a liturgia insiste na presença da  utopia de Deus: a “inabitação” de Deus nos homens não acontece apenas na  utópica Nova Jerusalém, mas em cada um que guarda a palavra do Cristo,  seu mandamento de amor. Pois a palavra do Cristo não é sua, mas a do Pai  que o enviou (Jo 13,24; evangelho).

Os  discípulos não entenderam isso logo. Por isso, grande parte dos  primeiros anos do cristianismo decorreu em “tensão escatológica”:  aguardava-se a vinda de Cristo com o poder do alto, a Parusia, como  instauração do Reino de Deus. Só aos poucos, os cristãos começaram a  entender que a nova criação já tinha iniciado, na própria comunhão do  amor fraterno, testemunho do amor de Cristo a todos os homens. Esta  compreensão, esta “memória esclarecida” de Cristo é uma das realizações,  talvez a mais importante, do Espírito Santo.

Neste tempo  intermediário, não devemos ficar com medo ou tristes porque Cristo não  está conosco. Ele permanece conosco, neste Espírito, que nos faz  experimentar a inabitação em nós dele e do Pai – portanto, muito mais do  que significa sua presença na terra, pois o Pai vale mais do que a  presença física de Cristo (14,28). Ele permanece conosco também no dom  messiânico que ele nos deixa, a “paz”, porém, não como o mundo a concebe  (14,27). Escrevendo isso, Jo parece polemizar com a ideia de paz dos  tratados políticos e também com o conceito judaico da paz messiânica, a  realização de um reino de Deus mundano, dirigido pelas mesmas leis e  mecanismos que dirigiram os reinos até agora, portanto, uma paz que  prepara a guerra…

Antes de ver o que é, no concreto, a  inabitação de Deus e de Cristo entre nós hoje, é bom olhar para a  sugestiva descrição da nova Jerusalém. Observemos alguns detalhes: os  nomes das doze tribos de Israel e dos doze apóstolos, símbolos do novo  povo de Deus fundamentado sobre os apóstolos; a ausência do templo –  ideia cara ao Novo Testamento, já que Cristo  substituiu o templo de Jerusalém pelo de seu corpo ressuscitado (cf. Jo  2,18-22 etc.); sua “iluminação”: a glória de Deus, e o Cordeiro, sua  lâmpada. Não se deve explicar muito essas imagens, importa captar o que  querem sugerir, num espírito global. É uma cidade que tem doze portas  com os nomes das doze tribos, para acolhê-las no dia em que elas forem  reunidas dos quatro ventos, par viverem na paz messiânica, tendo por  centro só e exclusivamente Deus e o Cordeiro. É a cidade para viver na  presença de Deus e Cristo. E isto é a paz!

Nossa comunidade cristã  deve ser a antecipação da Jerusalém celeste. Tendo Cristo por centro e  luz, certamente haverá unidade e comunhão entre seus habitantes. A 1ª leitura de hoje pode ilustrar isso. O conflito na comunidade era grave,  certamente tão grave quanto hoje o conflito entre os defensores da  cristandade e os de uma Igreja-testemunha, despojada, que vai ao  encontro dos mais pobres. O problema era análogo: a Igreja devia ser  concebida como uma instituição acabada, à qual os outros se deveriam  agregar? Neste caso, ela podia conservar suas instituições tradicionais,  que eram judaicas. Ou seria a Igreja um povo a ser constituído ainda,  aberto para a forma que o Espírito lhe quisesse dar? Para este fim,  Paulo e Barnabé procuraram a união dos irmãos em redor daquilo que o  Espírito tinha obrado junto com eles. Conseguiram. Não esforçaram em vão  (cf. Gl 2,2). O “Concílio dos Apóstolos”, como se costuma chamar este  episódio (At 15), confirmou a prática de admitir pagãos sem passar pelas  instituições judaicas (circuncisão, sábado etc.). Apenas em nome da  mesma união fraterna, os cristãos do paganismo deviam abster-se de  quatro coisas que eram, realmente, tabus para os judeu-cristãos; não  respeitar isso seria tornar a vida em comunidade impossível. A caridade  fraterna acima de tudo!

Na caridade fraterna, Deus e “o Cordeiro”  moram conosco. A cidade de Deus não é uma grandeza de ficção científica,  nem uma cristandade sociologicamente organizada. Ela é uma realidade  interior, atuante em nós e, naturalmente, produzindo também modificações  no mundo em que vivemos. Ela é obra do Espírito de Deus que nos  impele.

Onde há amor, Deus aí está! 

É comum  ouvir-se que a Igreja é opressora, mera instância de poder. Isso vem do  tempo em que, de fato, a Igreja e o Estado disputavam o poder sobre a  população. E os meios de comunicação se esforçam por manter essa imagem,  como se nunca tivesse acontecido um Concílio Vaticano II, como se nunca  tivessem existido o Papa João XXIII, Dom Hélder Câmara… Disse um  psicólogo: “A sociedade precisa de manter viva a imagem de uma Igreja  opressora para poder se revoltar conta ela, assim como um adolescente só  se sente bem quando pode revoltar-se contra o pai…”

A liturgia  de hoje nos faz ver a Igreja de outra maneira. Claro, ela ainda não é  bem como deveria ser, aquela “noiva sem ruga nem mancha” que é a  Jerusalém celeste da 2ª leitura. Mas quem ama acredita  que a pessoa amada é muito melhor por dentro do que parece por fora. Por  isso, se amamos a Igreja, acreditamos que em sua realidade mais  profunda ela é, mesmo, a noiva sem ruga nem mancha… Vista com os olhos  do Apocalipse, a Igreja é a morada de Deus, a Jerusalém nova, em que  não existe mais templo, porque Deus e Jesus – o Cordeiro – são o seu  templo. Seu santuário é Deus mesmo, não algum edifício para lhe prestar  culto. Deus está no meio de seu povo. Isto basta.

A 1ª leitura descreve  um episódio da Igreja que manifesta isso. Os apóstolos tiveram uma  discussão sobre a necessidade de se conservar os ritos judaicos na jovem  Igreja, no momento em que ela estava saindo do mundo judeu e abrindo-se  para outros povos, na Ásia e na Europa. Depois de oração e deliberação,  os apóstolos chegaram à conclusão de que, para ser cristão, não era  preciso observar o judaísmo (que tinha sido a religião de Jesus).  Somente fossem observados alguns pormenores, para não escandalizar os  cristãos de origem judaica. Os apóstolos reconheceram que o antigo culto  do templo se tinha tornado supérfluo. O evangelho de  hoje nos faz compreender por quê: “Eu e o Pai viremos a ele e faremos  nele a nossa morada”, diz Jesus a respeito de quem acredita nele (João  14,23). Os fiéis são a morada de Deus. A Igreja, enquanto comunhão de  amor, é a morada de Deus.

Não precisamos de templo concebido como  “estacionamento da santidade”. O povo simples sente isso intuitivamente,  quando arruma um galpão ou um pátio para servir de salão comunitário e  capela e tudo, lugar de oração, de celebração, de reunião, para refletir  e organizar sua solidariedade e sua luta por mais fraternidade e  justiça. Sabe que não é nos templos de pedra que Deus habita, mas no  coração de quem ama e vive seu amor na prática. “Onde o amor e a  caridade, Deus aí está”.

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