Maria na Sagrada Escritura: o lento delinear-se de um retrato
Como a Bíblia nos apresenta Maria? Neste texto, de forma didática e gradual, vemos como Maria aparece nos relatos bíblicos, desde uma mulher sem aparente importância, até ser destacada como mãe do salvador
Como a Bíblia nos apresenta Maria? Acompanhemos como ela vai nos apresentando, traço a traço, o retrato de Nossa Senhora!
1.1. Paulo (Gl 4,4-7): Anônima, aparece em função de Cristo: nos dá o Filho e nos faz filhos
A carta aos Gálatas foi escrita cerca de 56-57. É o primeiro texto mariano do NT. Quem sabe Maria ainda estivesse viva. Que dizer de Gl 4,4? “Nascido de mulher” indica a “condição humana”, especialmente em seu aspecto fraco e mortal. Paulo não diz exatamente “nascido”, mas “feito”, talvez para dar a entender que o Filho preexistia desde sempre; Ele não vinha do nada. “Feito de mulher” é uma expressão da kenosis de Cristo. Ser “filho de mulher”, fosse essa mulher Maria, não era para Jesus sinal de glória, mas antes de humilhação.
O interesse do texto é estritamente cristológico. Maria, portanto, permanece anônima: não é nomeada, mas apenas designada como a “mulher” – uma mulher como qualquer outra, sem uma identidade pessoal. Maria só entra aí em função de Cristo. Mesmo assim, pode-se sustentar que Gl 4,4 contém uma mariologia “germinal”. No arco da História da Salvação, Maria se situa precisamente no tempo da plenitude. Ela está estreitamente relacionada com o Filho e com seu “envio”. Aqui a mariologia aparece como absolutamente cristocêntrica. O Filho de Deus torna-se filho de Maria. É Maria que possibilita a “adoção filial”, conceito exclusivo de Paulo (cf. Rm 8,15-23). O Filho, que nasce sob a Lei para redimir da Lei, faz-se igualmente “filho de uma mulher”, com o fim de fazer do ser humano “filho de Deus”.
1.2. Marcos (cerca ano 60): Maria = Um Mistério a ser descoberto ainda
No primeiro evangelho escrito, Maria aparece como imersa no meio do seu clã. Tem apenas um nome, não tem um perfil definido. É ainda uma figura sem relevo, quase insignificante. Não tem uma personalidade, mas uma mera função. Quando parece emergir, é restituída à insignificância: “Quem é minha mãe” (Mc 3,33). “Não é ele o filho de Maria?” (Mc 6,3). Paulo (Gl 4,4) tem uma visão parecida. Para Marcos, Maria é apresentada como uma mulher qualquer. Mc ainda não sabe nada da dignidade teológica de Maria. A lição que fica para nós é que o “mistério de Maria”, em seus inícios, era tão obscuro que ficou praticamente invisível. O primeiro evangelho nem sequer suspeita do Mistério que envolve Maria e que os evangelistas seguintes porão paulatinamente à luz. Marcos nos diz como Maria, como todos os membros de seu clã, não compreendeu logo Jesus e sua missão. Ele dá a entender que Maria era ignorante do mistério de Jesus. A lição que fica para nós é que Maria começou sua peregrinação de fé (cf. LG 58) praticamente do nada, do ponto zero. Ela foi crescendo a partir da obscuridade.
1.3. Mateus (cerca ano 70): Mãe virginal do Messias, segundo as profecias
Em Mateus, Maria emerge como uma “personagem” importante da História da Salvação (cf. genealogia). Maria tem uma relação privilegiada e mesmo exclusiva com Cristo. É toda cristocentrada: é inteiramente de e para Cristo. Pela sua virgindade, é testemunho e sacramento do Messias, de sua origem e de sua natureza divina. Não possui ainda um “rosto” próprio, uma personalidade autônoma. É mais uma “mãe funcional” do Messias, do que “mãe pessoal”.
Mt 1,1-16: Genealogia de Jesus: Algo de novo está começando agora!: Na genealogia, Maria representa o ponto de inflexão a partir do qual tem início a Nova Humanidade, aquela gerada segundo o Espírito, fato esse sinalizado justamente pela virgindade da jovem galileia. A Nova genealogia, inaugurando a “nova história” da graça, passa pela Mulher, não pelo Varão, que dominou e continua a dominar a cena da “velha história” do pecado.
Mt 1,18-25: O anúncio a José: Aquilo que acontece em Maria é divino! : Todo o relato se concentra na ascendência davídica de Cristo através de José. Este é aqui o protagonista, e não Maria, como se dá em Lucas. Mt escreve para os judeus, que esperavam, como Messias, um descendente de Davi. Maria se encontra grávida, por obra do Espírito Santo. O foco central não é mariológico, mas cristológico. A virgindade de Maria é um “dado” mateano seguríssimo, referida em Mt 1 nada menos do que quatro vezes: nos vv. 18,20,23 e 25.
Mt 2,10-20: Visita dos Magos e fuga para o Egito: 3 linhas de sentido mariológico: Maria aparece como a nova Jerusalém e o novo Templo. O relato dos magos evoca Is 60, que descreve Jerusalém toda iluminada, feita centro do mundo e para a qual se dirigem os povos da terra com seus reis, trazendo suas riquezas. À essa luz, a Virgem-mãe emerge como a nova Capital sagrada. É para ela que se dirigem os povos, para encontrar o Rei salvador. Maria emerge aqui como rainha-mãe. Essa é uma cena de corte, como viram os grandes artistas que a retrataram com pompa e circunstância. Jesus e sua mãe recebem as homenagens reais: a prostração e entrega dos dons, caracterizados pela excelência. O menino e sua mãe: Maria se mostra a companheira inseparável do Filho. Essa expressão é usada 4 vezes. Ela denota a “comunhão de destino” de Maria com o seu Filho.
1.4. Lucas (cerca ano 80)
Em Lc, Maria já é uma “personalidade”: mulher responsável, autônoma, determinada. Tem um rosto, um perfil, um caráter. Tem uma identidade própria. Maria é toda de Cristo, por uma decisão pessoal sua. É pessoa que caminha, cresce e se determina. Lucas enfatiza a figura de Maria como a mulher de fé por excelência. Os textos lucanos mais importantes são: 1) Anunciação, 2) Visitação, 3) Magnificat. Vamos nos deter nestes.
1) Anunciação (Lc 1,26-38): é o texto mais importante de todos! A Virgem aparece como a grande protagonista; é o texto mais usado na Liturgia e mais citado pelos Padres da Igreja. É a cena mais retratada pelos artistas. Maria representa aqui a Nova Humanidade. “Alegra-te”: é a saudação jubilosa, inspirada nos oráculos messiânicos dos profetas pós-exílicos: Zacarias, Joel e Sofonias. O termo “cheia de graça” está em lugar do nome próprio. É como se esse apelativo definisse Maria diante de Deus. “Eis aqui a serva do Senhor”. Maria aparece como figura da liberdade humana, de uma liberdade que é poder de entrega, mas também de recusa. Ela vive a aventura dramática da liberdade.
2) Visitação de Maria a Isabel (Lc 1, 39-45): “o amor sempre tem pressa”: A Virgem é levada pelo amor, seja ao filho que traz no ventre, seja à prima em necessidade, seja simplesmente à vontade de Deus. Essa “pressa” é sinal de solicitude e disponibilidade. Maria aparece aqui como a primeira evangelizadora, que leva, por primeiro, ao Mundo a mensagem da Boa-nova: o Messias salvador chegou! “Bendita és tu entre as mulheres!”: é a forma hebraica para o superlativo: Maria é a mulher mais excelsa entre todas as mulheres. O paralelismo do texto da Visitação com a narrativa do transporte da Arca da Aliança é notável (2 Sm 6,2-16). “Feliz aquela que acreditou”: Maria é a crente por excelência.
3) Magnificat, o canto da libertação messiânica (Lc 1, 46-55): é o texto bíblico mais longo colocado na boca de Maria. Aqui não se fala de Maria, mas é Maria mesma que fala: fala de Deus e das maravilhas que realizou nela, no mundo e em seu povo. Esse cântico foi declarado pelo Documento de Puebla o “espelho da alma de Maria”, o “cume da espiritualidade dos pobres de Javé e do profetismo da Antiga Aliança” (n. 297; cf. 1144). O hino oferece uma síntese da espiritualidade cristã em ótica mariológica. J. Dupont propõe uma estrutura tripartida:
–Ação de Deus em Maria: Mensagem religioso-pessoal (LC 1, 46-49):
“A minha alma engrandece o Senhor”: o clima aqui é de sagrado entusiasmo: é uma “ode a Deus”. Todo o cântico vibra de um fervor transbordante.
“Exulta meu espírito em Deus meu Salvador”: notar o tom de alegria nesta parte do cântico.
“Porque olhou para a pequenez”: para Maria, “pequenez” significa, em primeiro lugar, a humilhação social. Refere-se a uma situação objetiva: sua insignificância social, ou talvez mesmo, seu estado de virgindade, pouco valorizada entre os judeus, tanto mais se fosse permanente.
–Ação de Deus na História humana: Mensagem religioso-social (Lc 1, 50-53)
A segunda parte do Magnificat é o “núcleo duro” do cântico. O hino assume agora um tom extremamente enérgico: “Não fala aqui a doce, terna e sonhadora Maria das imagens, mas uma Maria apaixonada, impetuosa, altiva, entusiasta” (Bonhöffer).
“Derruba os poderosos de seus tronos”: palavra ousada, fortíssima! É a “subversão” de Deus em relação a todas as hierarquias injustas e todas as “ordens violentas”.
–Ação de Deus em Israel: Mensagem religioso-étnica (Lc 1, 54-55): “Acolhe Israel, seu servidor, fiel ao seu amor”: Maria está completamente inserida em seu povo.
1.5. João (cerca ano 90)
Maria = mediadora da fé (Caná), mãe da comunidade (sob a cruz) e figura da Igreja e da Nova Criação (Ap 12): Em João, Maria é mais que uma personalidade: é “personalidade corporativa”. Ela possuiu uma imensa ressonância simbólica: Ela representa a Comunidade eclesial, a Humanidade salva, o Cosmo redimido. João tem uma “alta mariologia”, uma “mariologia simbólica”. A Maria de João transcende infinitamente Maria de Nazaré.
1) Maria em Caná (Jo 2): Maria é aqui, com surpresa, referida antes de Jesus. Ela se adianta ao Filho, para abrir-lhe, porém, o caminho. João nunca nomeia Maria com seu nome próprio, diz sempre: “A Mãe de Jesus”. Para ele, Maria não vale tanto como pessoa singular, mas como uma figura simbólico-teológica, dotada de uma função especificamente cristológica e eclesiológica. “Estava lá”: a Virgem está presente na vida do povo, aqui em suas festas. “Eles não têm mais vinho”: constatação que corresponde a uma solicitação tácita. “Mulher”: tratamento solene. Aqui não é um filho qualquer que se dirige a uma mãe qualquer, mas o Messias à “Mulher”, Mãe da Nova Humanidade. “Sua Mãe diz aos servos”: Segurança com que se dirige aos servos, confiança que mostra no filho e em sua ação misteriosa, e isso sem ter tido antes qualquer experiência de seu poder sobre a qual pudesse se apoiar.
2) A Mãe de Jesus ao pé da cruz (Jo 19, 25-28): Importância central e mesmo culminante. Trata-se da “hora suprema”, tão falada e suspirada por Jesus: a hora da exaltação na cruz. Maria estava “de pé” = assim João indica a firmeza e constância de Maria e suas companheiras no seio daquela provação terrível. Como interpretar teologicamente “Maria aos pés da cruz”? João, como em Caná, não diz simplesmente “Maria”, mas “a Mãe de Jesus”, assim como dirá “o Discípulo amado” e não “João”. Essas duas figuras são referidas de modo “anônimo”, pois representam mais tipos simbólico-místicos do que pessoas individuais. Maria “está de pé junto à Cruz”, em atitude soberana, como Rainha junto ao Trono do Rei, aureolado de esplendor pascal.
3) Ap 12: “A Mulher vestida de sol”: “Um grande sinal apareceu no céu: uma Mulher…”. Como sinal, é algo que pede uma interpretação. Trata-se de uma realidade que se dá “no céu”. O mistério da “Mulher” é chamado de grande, porque da maior significação. Que sentido tem, pois, a “Mulher”? É direta e primariamente a Igreja. Só indireta e secundariamente é Maria. As razões para entender o texto também em ótica mariológica são as seguintes: 1) A Mulher-Igreja, representando em particular o Povo da Antiga Aliança, só pode efetivamente dar à luz através de uma mulher definida, Maria de Nazaré; 2) Maria e a Igreja são uma só Realidade mistérico-sacramental em duas perspectivas. Maria encarna o destino da Comunidade messiânica: destino de parto e dor, mas também destino de vida e vitória. Daí porque Maria aparece, nas palavras da Lumen Gentium 68, como “sinal de esperança segura e conforto para o Povo de Deus peregrino”. Como se vê, há um crescimento impressionante nos evangelhos quanto ao entendimento do mistério da Virgem. E o processo continuou depois e continua ainda hoje (1).
1– Cf. Clodovis BOFF, Introdução à Mariologia, Petrópolis: Vozes 2012, 6ª.ed., pp. 31-33.
Dom Total