Viver Evangelizando

Consoladoras e consoladores

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Consoladoras e consoladores

‘Consolar’ é uma palavra muito mais rica de conteúdo que o que se costuma entender-se hoje por ela em seu uso habitual. A consolação espiritual é um dom gratuito de Deus que deve ser reconhecido e agradecido como tal

Os Exercícios Espirituais (EE) de Santo Inácio começam por uma vocação e terminam em uma missão: o envio do exercitante ao mundo enquanto “meio divino”, âmbito da presença de Deus.  Quando Inácio nos propõe aqui que contemplemos como Jesus Ressuscitado desempenha o ofício de consolar, ele não está se referindo a algo “ocasional” a que Jesus se dedique “de vez em quando”, ou “quando tem tempo livre”: mas se refere a algo que é fundamental, essencial, característico do modo ressuscitado de viver: Consolar!

José Antonio García escreve: “Consolar é o que define a ação do Ressuscitado… Não se trata de um ato pontual mas sim de um “ofício” que definirá para sempre a atividade de seu Espírito no mundo”[1]. Inácio apresenta o Cristo ressuscitado com esta característica: ele quando aparece cumpre o papel de CONSOLAR os seus discípulos (EE 224). A expressão deste “consolar” é a paz e a alegria que Ele traz (Cf. Jo 15,11; 16, 22.24). Inácio sugere uma série de 13 contemplações sobre as aparições de Cristo Ressuscitado. Quando nós olhamos as instruções que ele dá nos preâmbulos e nas notas, chama a atenção duas coisas:  a insistência sobre a alegria e a imagem de Cristo como Consolador. “Observar o ofício de consolador que Cristo Nosso Senhor exerce, comparando-o ao modo com que os amigos costumam consolar os seus amigos” (EE 224).

Esta imagem evoca o Quarto Evangelho, onde Jesus chama os seus discípulos de amigos (Jo 15,14ss) e promete que Ele enviará um outro Paráclito, que será chamado Espírito da Verdade (Jo 14,17) o Espirito Santo (Jo 14,26). Entre os tantos significados possíveis da palavra “paráclito” aparece também aquela de “consolador”. O Espírito consolará os discípulos, ensinando-lhes e os levando a recordar-se de tudo o que Jesus tinha dito (Jo 14,26). O consolador levará os discípulos à plenitude da verdade do mistério pascal (Jo 16,12ss). Portanto, é precisamente através do Espírito que o Cristo ressuscitado exerce o ministério de consolar[2]. Considerar como Jesus consola os seus é uma atividade que mais do que dizer respeito ao modo como “vemos” ao Senhor ressuscitado, concerne o modo como “ouvimos” a Ele. Como resultado do ouvir o que Ele dizia, os discípulos de Emaús exclamarão: “Não ardia o nosso coração quando ele falava conosco pelo caminho?” (Lc 24,32).  Trata-se de uma tamanha experiência do amor de Deus que reordena todas as demais afeições ao seu redor.

Sem dúvida, alguém que está rezando as aparições do Ressuscitado gostaria de experienciar Jesus como aquele que nos consola. Mas quando Inácio em seguida acrescenta “como amigos estão acostumados a fazer um com o outro”, ele parece estar dizendo que outra graça dessa contemplação é aquela de fazer o que o Jesus ressuscitado faz, isto é, ser uma fonte de consolação para os demais, e nos deliciando disso.  Esse aspecto tem a ver pois com a delícia e a satisfação em falar aos outros sobre Jesus, e fazendo isso de modo tal que o foco não esteja em nós mas nele, e notando outros respondendo àquilo que eles estão ouvindo com um aumento na fé, na esperança e no amor[3].

Significado de “consolar”: “Consolar” é uma palavra muito mais rica de conteúdo que o que se costuma entender-se hoje por ela em seu uso habitual.  No nosso uso atual a palavra “consolação” e o verbo “consolar” podem ter um significado profundo e outro mais superficial. Podem significar um tipo de proximidade e comunhão com o outro capaz de transmitir-lhe compreensão, alento, impulso: uma transmissão de energia que desperte nele suas próprias capacidades de reação diante uma situação de tristeza, desesperança ou sofrimento; ou podem simplesmente aludir a algo mais superficial: uma palavra de condolências ou de alento, talvez sinceros, mas que deixam o outro no mesmo lugar onde está. Em Inácio, só há lugar para o sentido “forte” dessas expressões[4].

Consolação e consolar são para ele a linguagem e ação de Deus na pessoa humana[5], comunicação do Criador à criatura, iniciativa de Deus que quando recebida com agradecimento e pureza, isto é, como dom indevido e como escuta disponível, nunca deixam o homem ou a mulher consolados no mesmo lugar de antes.

A consolação é sempre dinamizadora do divino que existe no homem. O consolo completo implica em dar sentido novo a tudo o que antes tinha causado “desconsolo”. As Aparições deram Vida a quem estavam “mortos”, reconstruíram pessoas que estavam radicalmente derrubadas, renasceu uma esperança mais forte em homens e mulheres que acreditavam te-la perdido para sempre, refizeram um grupo desfeito e confuso sem remédio, trouxeram um entusiasmo e uma força que não existia antes naquelas pessoas covardes, desfizeram os fantasmas e medos de seus corações, tiraram das almas deles potencialidades ocultas para si mesmos[6].

Portanto, que traços fortes definem a consolação inaciana[7]?

A consolação espiritual é um dom gratuito de Deus que deve ser reconhecido e agradecido como tal. Esse dom do Espírito cria em nosso interior “um campo de força” que centra e unifica a percepção de nós mesmos, do mundo e das coisas com respeito a Deus.

A consolação espiritual contém um elemento direcional: mostra o caminho a seguir e confere fortaleza para segui-lo. Esse último elemento nos parece ser menos conhecido. Normalmente identificamos a experiência consolatória com estados afetivos mais ou menos intensos que nos atraem ao amor por Nosso Criador e Senhor. E é justo isso. É o chamado nível vivencial da consolação, que introduz a pessoa num estado de muda adoração. Mas num segundo momento, que não se destaca totalmente do primeiro, toda consolação verdadeira termina em uma vocação e missão, é dada “para que possamos tomar o caminho para acertar” (EE 318).

A alegria de crer em um Deus consolador:  A contemplação dos mistérios da Ressurreição é onde o exercitante vai poder experimentar com maior profundidade que Deus é um Deus que consola, que dá vida, paz e alegria ao ser humano. A consolação é o sinal por excelência da presença de Deus: dá testemunho de Deus porque encontra a sua origem somente em Deus9. É preciso saber distinguir essa alegria de uma euforia barulhenta e exterior. A alegria da Ressurreição é frequentemente uma quieta e gentil espécie de alegria. Ela é experimentada nos frutos da ressurreição.

Os efeitos da ressurreição: No número 223 dos EE, Inácio convida o exercitante a contemplar como agora a natureza divina se revela e produz seus santos e verdadeiros efeitos. Quais seriam estes santos efeitos da ressurreição?

Se olhamos para o próprio Cristo e seus discípulos, podemos identificar, com Brian O’Leary[8], três efeitos: 1) A experiência interior de Cristo mesmo de alegria e consolação quando Ele experimenta a ressurreição; 2) A consequente transformação do seu corpo físico (Cf. 1 Cor 15,42-44); 3) As mudanças que se dão nos discípulos quando eles se encontram com o Senhor ressuscitado. Estas incluem a experiência diversificada de consolação e alegria. Esta experiência é dinâmica, no sentido que ela leva à formação da comunidade cristã e à proclamação do evangelho por toda a terra.

José Antonio García acrescenta um efeito “eclesial”: para ele, “o efeito visível dessa consolação do Senhor se manifesta em restaurar a experiência de vocação e de missão dos seus discípulos, obscurecida pela crucifixão de Jesus e agora recuperada na alegria de “ver” a Jesus”[9].  Um efeito que o Ressuscitado provoca nos seus discípulos e discípulas consiste em desviá-los dos seus lugares de busca: de buscá-lo nos “sepulcros”, onde não se encontra, a encontrá-lo na comunidade e na missão onde Ele segue vivo e sendo o Senhor13. Para preparar os seus discípulos para a missão, um segundo efeito exercido sobre eles pelo Ressuscitado foi dar a eles uma compreensão do mistério pascal.

O Desafio da alegria em meio à dor e ao pecado: A experiência fundamental desta contemplação dos efeitos da Ressurreição é a de que o mundo e a humanidade vivem já, desde agora, a vida nova inaugurada por Jesus Cristo Ressuscitado. Toda a realidade tem agora como selo a sua Vitória sobre o mal e a morte. No entanto, o Ressuscitado, todavia está crucificado e a sua glorificação, ainda que seja já um fato incontestável, ainda se encontra em processo de plenificação. Os mistérios da Ressurreição levam o exercitante a fazer a experiência dessa tensão escatológica, desse conflito em seu corpo e na sua vida. Admitido a entrar no universo das testemunhas das aparições do Ressuscitado, o exercitante faz a experiência de um deus que aparece na sua vida transformando-a, mas em seguida desaparece e se subtrai, deixando-o com a prova e o sabor da “aparição”[10]. Quais seriam as principais “tribulações” às quais deveríamos estar mais atentos em vista de sermos mediadores da consolação do Senhor nelas?

– Nosso mundo necessita aquela consolação de Deus que o livre da cobiça e da tristeza, comunicando-lhe a alegria e gozo espiritual da filiação divina e da fraternidade humana.

– Combater a “idolatria” que consiste em amar as coisas “em si” e não “no Criador de todas elas”. Viver a Ressurreição é fazer a experiência de seguir e acompanhar o Homem Novo, Cristo, renovando o mundo, as pessoas.

Referências:

[1] José Antonio GARCÍA, Ofício de consolar: recibir y transmitir la consolación de Dios, Manresa 75 (2003) 270.

[2] John R. SACHS, The Spirit of the Risen Lord, The Way Supplement 99(2000) 24.

[3] William REISER, Locating the Grace of the Fourth Week,35.

[4] José Antonio GARCÍA, Ofício de consolar: recibir y transmitir la consolación de Dios, 172.

[5] Veja-se a esse respeito o excelente artigo de Jesús CORELLA, La consolación en los Ejercicios de San Ignacio, Manresa 71 (1990) 319-337.

[6] Antonio GUILLÉN, El proceso espiritual de la Cuarta Semana, 133.

[7] José Antonio GARCÍA, Ofício de consolar: recibir y transmitir la consolación de Dios, 275.

[8] Brian O’LEARY, Consoler and Consolation, The Way Supplement 99 (2000) 61- 69.

[9] José Antonio GARCÍA, Ofício de consolar: recibir y transmitir la consolación de Dios,270.

[10] Maria Clara Lucchetti BINGEMER, La cuarta Semana. El don y el desafío de la alegría, Manresa 79 (2007) 151.

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