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A conversão sinodal: ‘escuta generosa, palavra ajustada, mãos e coração de costureiro/a’

A conversão sinodal: ‘escuta generosa, palavra ajustada, mãos e coração de costureiro/a’

Escutar o outro não significa estar de acordo com tudo o que pensa e diz. É importante descobrir qual a ‘palavra ajustada’, que contribui para a ‘costura’ do corpo único de Cristo, enriquecido pelas diversidades de seus membros.

Em Jesus Cristo tem valor “a fé que opera pelo amor” (Gl 5,6)

No dia 10/10/2021 o Papa Francisco abriu oficialmente a primeira etapa do sínodo sobre a sinodalidade, que tem como tema “Comunhão, Participação, Missão”. Na homilia que fez na ocasião, comentando o episódio do “jovem rico”, ele afirmou que toda a caminhada sinodal deve ser inspirada pelos verbos a partir dos quais pode ser resumido esse episódio: “encontrar, escutar, discernir”. Na abertura do II Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral, no dia 02/05/2022, que tem como tema “A sinodalidade no processo pastoral da Igreja no Brasil”, Lucimara Trevizan, do Centro Loyola de Belo Horizonte, e Pe. Francys Silvestrini Adão, da Faculdade Jesuíta, trouxeram para o momento de espiritualidade a imagem dos “três portais espirituais para uma vivência sinodal”: “1. Uma escuta generosa, 2. Uma palavra ajustada, 3. Mãos e coração de costureiro/a”. Nos dias que antecederam a abertura do congresso, a CNBB apresentou uma corajosa “Mensagem ao povo brasileiro”, na qual, além de evocar o momento presente, marcado pela “lógica do confronto que ameaça o estado democrático de direito e suas instituições”, transformando “adversários em inimigos”, conclama a população a estar atenta às manipulações de grupos religiosos e de grupos que disseminam nas redes “fake News”, colocando em risco o processo democrático do país.

Pode parecer forçado associar a caminhada sinodal em curso no conjunto da Igreja católica, a reflexão sobre a sinodalidade na história recente da Igreja católica no Brasil e a situação política do país na hora atual. Porém, segundo a revelação de Deus na história de Israel, a fé não se reduz a um sentimento diante das “questões-limite” da existência, como são a finitude, a falibilidade, o sentido, mas ela impacta a visão de mundo e se traduz em prática de justiça. Segundo o episódio emblemático da revelação do “Deus dos pais” a Moisés (Ex 3,1-22), o próprio Deus é afetado ao “ver a opressão” infligida a seu povo no Egito, e ao “escutar” seu clamor (Ex 3,7). Algo parecido se pode dizer da compreensão radical de quem é Deus, presente no Prólogo do evangelho de João, ao fazer a célebre afirmação “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). De fato, a fé transfigura o olhar de quem crê, e ela deve se traduzir, por um lado, em indignação diante de tudo o que atenta contra a vida e a dignidade humana, sobretudo dos mais pobres e vulneráveis, e, por outro, em obras de caridade e solidariedade, colocando-se ao serviço desses mesmos pobres e vulneráveis para construir com eles um mundo sem muros, divisões, injustiças, de vida para todos/as. Muitas vezes, isso poderá se realizar em gestos simples, como dar alimento a quem tem fome, aliviar a dor de quem sofre, mas, a caridade eficaz, como já dizia Paulo VI, é a caridade “política”, que age nas estruturas que produzem injustiça e desigualdades, eliminando suas causas.

Nesse sentido, o caminho sinodal, em curso em toda a Igreja no momento presente, visa certamente os processos eclesiais internos à caminhada das comunidades de fé, mas devem também reverberar na sociedade. De fato, tanto os verbos propostos pelo Papa em 10/10/2021, “encontrar, escutar, discernir”, quanto os “portais” indicados para a oração do início do II Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral, “a escuta generosa, a palavra ajustada, as mãos e coração de costureiro/a”, devem ser traduzidos nas dinâmicas em curso na sociedade brasileira na atual conjuntura em que vive. A lógica de muitos grupos sociais no país não é a do encontro, como sugere o Papa para o caminho sinodal, mas a do “confronto”, como indica a “Mensagem dos bispos da CNBB”, que transforma o adversário em inimigo. Mesmo no interior da Igreja essa lógica tem operado, com grupos que demonizam e anatematizam os demais, impossibilitando todo encontro. Pensar diferente não é problema. Pelo contrário, pode enriquecer a compreensão da realidade em geral e a do mistério de Cristo em particular. Mas, quando a diferença é tão exacerbada que impede a comunhão, como já dizia Paulo aos Coríntios, o que vai acontecer é a “divisão no corpo de Cristo” (1Cor 1,13), e, infelizmente, existem vários grupos que têm apostado nisso, num sinal evidente de não desejo de comunhão.

O encontro com o outro, o diferente, supõe abertura à escuta. Nesse sentido, é interessante que toda a lógica da fé bíblica, que é a lógica que leva à fé, supõe a escuta. Isso aparece no grande credo de Israel, “Escuta, Israel!” (Dt 6,4), que é evocado por Paulo quando diz que “a fé nasce da escuta” da Palavra de Cristo (Rm 10,17). Sem escuta do outro é impossível qualquer encontro. Certamente, toda escuta supõe primeiro a capacidade do silêncio. Infelizmente, quando se quer convencer pelo autoritarismo, se privilegia o ruído, a confusão, a polarização, a exacerbação dos contrastes. Essa lógica, segundo a etimologia do termo “diabo” (= aquele que divide), é a da divisão. Nesse sentido, o caminho sinodal, ao colocar a escuta como condição e “portal” do “caminhar juntos” (= sínodo), quer combater a presença de satanás (= divisão) no interior da Igreja e pode ser uma escola para os/as cristãos/ãs exercitarem a sinodalidade na sociedade.

Escutar o outro não significa estar de acordo com tudo o que pensa e diz. Daí a importância do discernimento, pois nem tudo ajuda a construir o “corpo de Cristo”, no âmbito eclesial, e nem tudo colabora para a criação de um “sentir comum”, que cria consenso, no âmbito das diversas buscas do “nós social”. Nesse sentido, é importante descobrir qual a “palavra ajustada”, que contribui para a “costura” desse corpo único de Cristo, enriquecido pelas diversidades de seus membros, ou desse “nós comum”, respeitoso das diferenças e criador de relações justas, inclusivas e portadoras das singularidades, que ajuda a construir o poliedro social com a riqueza das singularidades.

O II Congresso Brasileiro de Teologia Pastoral, ao refletir sobre a sinodalidade, mostrando como ela operou nesses 70 anos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), nos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), e nas provocações feitas nesses 15 anos da V Conferência do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) em Aparecida, não quis ser somente um exercício de memória. De fato, os painéis, conferências, seminários e comunicações indicaram as novas tarefas do processo sinodal no seio da própria Igreja, como o reconhecimento da dignidade sacerdotal, profética e real de todos/as os batizados/as, o lugar da mulher nas diversas instâncias de discernimento e decisão na Igreja, a vocação dos leigos/as, além de ter apontado os principais empecilhos à sinodalidade, como o clericalismo, a autoreeferencialidade, a primazia da institucionalidade sobre a evangelização, etc. Os debates, muito provocativos e instigantes, só terão real impacto no conjunto do corpo eclesial se os que participaram do Congresso souberem traduzi-los na vida concreta de suas comunidades de fé. É a partir delas que o caminho sinodal de fato acontece. É nelas que o encontro, a escuta, o discernimento, as mãos e o coração “costuram” os diversos membros que compõem o “corpo de Cristo”, sinal sacramental da costura do “nós social”.

Dom Total

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