Viver Evangelizando

O Cordeiro e o Rebanho

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O Cordeiro e o Rebanho

Reflexão sobre a Liturgia do Terceiro Domingo da Páscoa

Liturgia do domingo

1ª leitura: (At 5,27b-32.40b-41) Testemunho diante do sumo sacerdote –  Segunda defesa de Pedro diante do Sinédrio (cf. 4º dom. da Páscoa/B).  Repete: “Importa mais obedecer a Deus do que aos homens”. 5,30-32 é um  resumo do querigma cristão: anúncio do ressuscitado como salvador, pela  remissão do pecado, o que supõe a conversão. * 5,28-29 cf. At 4,17-19;  Mt 27,25 * 5,30-32 cf. 1Cor 15,3-7; At 2,23-24.32-33; 3,15; Hb 2,10;  12,2.

2ª leitura: (Ap 5,11-14) Honra e glória e poder ao Cordeiro –  Como por uma porta, o visionário entrevê os mistérios de Deus (4,1): o  Cordeiro imolado recebe os atributos do poder decisivo e escatológico  (4,12.13). As criaturas que o adoram estão na luz de sua glória: esta é  sua salvação. * 5,11-12 cf. Dn 7,10; Is 53,7; Fl 2,7-9.

Evangelho: (Jo 21,1-19 ou 21,1-14) Aparição do ressuscitado e vocação de Pedro a guiar o rebanho –  21,1-14: A Igreja aparece como barco de Pedro e como pesca milagrosa,  mas somente pela palavra do Senhor ressuscitado! – 21,15-19 utiliza a  imagem do rebanho: Pedro é instituído Pastor do rebanho que é o do  Cristo. Pedro, e não o discípulo amigo por excelência. Três vezes (cf.  as três negações), Pedro tem que confirmar sua afeição ao Senhor.  Vocação é graça. * 21,1-14 cf. Lc 5,1-11; 24,41-43; Jo 20,19-23.25-29 *  21,15-19 cf. Jo 13,37-38; 18,17.25-27; Mt 16,17-19; Jo 6,68-69; Lc  22,31-32; Jo 13,36.

Aparecem,  na liturgia de hoje, duas tônicas principais: o Cordeiro glorioso e  Pedro, pastor e porta-voz do rebanho. A origem destes temas parece  diferente, mas sendo a liturgia uma interpretação eclesial dos temas  bíblicos, vale a pena interpretar um tema pelo outro. Aparece então que o  Cordeiro do Ap (2ª leitura) deve ser visto como o  Cordeiro que guia o rebanho (cf. 7,17; 14,4 etc.). Não é um cordeirinho,  mas um carneiro. Solidário com o rebanho, o conduz à vitória. A este  Cordeiro vencedor são dados os atributos de Deus (os mesmos que são  dados ao “Filho do Homem” em Dn 7): honra, glória, poder e louvor.

Por  que Jesus é chamado o Cordeiro? A literatura apocalíptica (Ez, Dn, os  apócrifos, Ap) gosta de indicar pessoas e potências por figuras de  animais. Além disso, Jesus foi logo considerado vítima expiatória e  vítima pascal, como mostram o evangelho e 1ª carta de Jo, oriundos do  mesmo ambiente que o Ap (cf. Jo 1,29.35 e a representação de Jesus morto  na hora de imolar o cordeiro pascal – cf. festa do S. Coração/B). Como  vítima expiatória, Jesus vence os poderes do pecado, representados, no  Ap, por feras (como os impérios deste mundo em Dn). Portanto, o Cordeiro  é um vencedor, não pelas armas, mas pela solidariedade com o rebanho,  assumindo a morte por ele (cf. dom. pass.).

O rebanho é o tema central do evangelho de  hoje. Uma linha de interpretação importante, na tradição evangélica, vê  a ressurreição de Cristo antes de tudo como a reconstituição do rebanho  (disperso pelos acontecimentos da Páscoa em Jerusalém), na Galileia,  onde Cristo novamente o “precederá” (conduzirá como pastor), segundo Mc  14,27-28; 16,7. A aparição pascal de Jesus na Galileia, tanto em Mt  28,16-20 como em Jo 21, é a encenação deste “preceder na Galileia”.  Certos exegetas pensam que a pesca milagrosa de Lc 5,1-11 seria uma  antecipação para dentro da vida de Jesus de uma experiência pós-pascal,  mas pode ser também que um milagre da atividade galileia de Jesus foi  retomado em Jo 21 para encenar a “retomada” do rebanho depois da  dispersão – o “preceder” de Jesus, na Galileia. A descrição tem nítidas  reminiscências das refeições pós-pascais, narradas em Lc 24 e Jo 20. A  pesca parece que deveria servir para uma refeição de Jesus com os seus,  mas, entretanto, ele mesmo já prepara a comida, que é tomada num  espírito de eucaristia, e os discípulos podem acrescentar à refeição de  Jesus os frutos de sua “pesca”… Simbolismo não falta.

Na segunda  parte da narração – que, conforme o Lecionário, pode ser dispensada,  mas em nossa interpretação é indispensável – encontramos, em situação  pós-pascal, o episódio de Cesária de Filipe (cf. Mc 8,27-29): a  profissão de fé de Pedro. A narração em Jo 21,15-19 é influenciada pela  história da Paixão de Cristo: às três negações de Pedro correspondem as  três afirmações de sua amizade. O rebanho só pode ser confiado a quem  ama Jesus com o maior amor possível. Isso, porém, não exclui que, ao  lado do Pastor assim escolhido, exista o discípulo-amigo, o primeiro a  reconhecer o Ressuscitado (21,6; cf. 20,8). Talvez ambas as figuras,  Pedro e o discípulo-amigo, representem carismas ou até comunidades  diferentes do cristianismo iniciante. Jo 21 parece descrever um pouco da  história da primitiva Igreja, vista á luz da Páscoa.

De fato, na  história da Igreja, Pedro aparece como líder e porta-voz. É ele que,  diante do Sinédrio, em nome dos outros apóstolos, dirige ao sumo  sacerdote e atrevida palavra, que parece ter sido um slogan dos  primeiros cristãos: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens”  (At 5,29; cf. 4,19), e pronuncia mais um testemunho da ressurreição de  Cristo, que os chefes judeus mataram (1ª leitura).

Como  o Cordeiro, por solidariedade e amor, deu sua vida em prol do rebanho,  assim também o pastor que recebe seu encargo por seu amor não deixará de  dar sua vida (At 5,40-41; Jo 21,18-19).

CRISTO NA GLÓRIA E NA IGREJA

Muitas  pessoas dizem acreditar em Jesus, mas não querem comprometer-se com a  comunidade da Igreja. Talvez até entrem numa igreja bonita e espaçosa  para, ao voltar do serviço, descansar um pouco, mas a Igreja como  comunidade não as atrai. Pretendem acreditar em Cristo, mas não querem  saber de sua comunidade… Às vezes, vira até caricatura: invocam a  ajuda de Cristo e de todos os santos para resolver uns probleminhas  pessoais, mas não ligam para sua grande obra, a comunidade que ele  fundou. Será Jesus apenas um quebra-galho para uso pessoal?

Conforme a liturgia de hoje, Jesus ressuscitado está misteriosamente presente na Igreja. O evangelho conta como Jesus ressuscitado aparece aos apóstolos enquanto estão  pescando, sem êxito, no lago de Genesaré. Sua presença os faz pescar  grande número de peixes grandes – cento e cinquenta e três, imagem da  multidão que, logo nos primeiros anos, aderiu a Cristo na Igreja. Na 1ª leitura ouvimos  o atrevido testemunho dos Apóstolos, apesar de proibidos da falar no  nome de Jesus. É no testemunho da Igreja que Jesus ressuscitado vive  para o mundo. Querer ter Jesus sem a Igreja é como querer transportar  água sem balde. E este Jesus é o Senhor glorioso, adorado por todos os  santos no céu, como nos mostra o Apocalipse (2ª leitura). Que seja adorado assim também na terra.

Viver  como cristão é viver da palavra de Deus em Jesus Cristo. Esta palavra é  a instância suprema de nossa vida. “Importa mais obedecer a Deus do que  aos homens”, diz Pedro às autoridades de Jerusalém que o querem proibir  de anunciar o Cristo ressuscitado (At 5,29).

Ora, a Igreja serve  exatamente para guardar viva a palavra de Jesus e a sua presença no meio  de nós. A Igreja não serve para si mesma ou para satisfazer a ambição  dos padres – como a mídia às vezes parece insinuar, não sem culpa dos  próprios… A Igreja tampouco serve para construir ricos templos (alguns  melhor nunca tivessem sido construídos!). A Igreja existe para dar a  todos os seres humanos a oportunidade de conhecer Jesus morto e  ressuscitado, de tomar refeição com ele – como os seus primeiros  discípulos –, de acolher e cumprir sua palavra, sempre de novo traduzida  e explicada conforme as exigências de cada momento. Ela existe para  constituir a comunidade que é necessária para que o mandamento e o  exemplo de amor deixados por Jesus sejam transmitidos e postos em  prática, pois é impossível amar sozinho… A Igreja serve para fazer  acontecer, sempre, no mundo, a prática de Jesus – na justiça e no amor  eficaz ao próximo. Se ela fizer isso, ela partilhará para sempre a  glória que Deus deu ao “Cordeiro”, por ter-se sacrificado por nós. Pois  Deus ama o amor que dá a vida pelos outros. E quem faz isso, como  Cristo, já vive um pouco o céu. A Igreja serve para nos ajudar nisso.

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