Viver Evangelizando

Reconhecimento agradecido

1566966_515319

Reconhecimento agradecido

Mais do que um sentimento transitório e efêmero, para Santo Inácio a gratidão é uma visão permanente que reconhece o dom de tudo

A  gratidão constitui o “leitmotif” dos Exercícios Espirituais e é a  dinâmica de base pela qual Inácio conduz a pessoa a um compromisso com o  serviço originado com gratidão.

As pessoas sempre louvam a  gratidão. Escritores famosos comentaram que “a gratidão é a memória  moral da humanidade” (George Simmel) ou que “a gratidão é a forma mais  requintada de cortesia” (Jacques Maritain). Igualmente surpreendentes  são os comentários sobre a ingratidão: “A ingratidão é a essência da  maldade” (Emmanuel Kant) e “a ingratidão é uma abominação” (Sêneca).

Os  fundadores de grandes religiões e os grandes conhecedores da pessoa  ocuparam-se da dimensão “gratidão-ingratidão” séculos antes que a  ciência se ocupasse dela[1]. Sem saber, Cervantes já enumerava em 1615  os elementos fundamentais do agradecimento:

“Entre os maiores  pecados que os homens cometem, ainda que alguns digam que é a soberba,  eu digo que é a ingratidão, atendo-me ao que se costuma dizer: “o  inferno está cheio de mal-agradecidos”. Enquanto me foi possível,  procurei sempre fugir desse pecado desde o instante em que tive uso da  minha razão; e se não posso pagar as boas obras que me fazem com outras  boas obras, ponho em seu lugar o desejo de fazê-las, e quando esses não  bastam, as publico”[2].

A crítica de Inácio é particularmente  veemente: “Na sua Divina Bondade, eu considero (embora outros possam  pensar diferentemente) a ingratidão entre os mais abomináveis males e  pecados aos olhos do Nosso Criador e Senhor e das criaturas feitas  abertas para a glória divina… O menosprezo dos benefícios, das graças,  dos dons que temos recebido é a causa, princípio e origem de todos os  males e pecados. Ao contrário, – continua Inácio – “consciência e  gratidão dos benefícios e dons recebidos – quanto merecem ser amados e  estimados!”[3].

O QUE SIGNIFICA “GRATIDÃO”?

Não  é nada fácil definir um sentimento, que se expressa das formas as mais  diversas. Contudo, parece-nos poder encontrar 3 elementos geralmente  presentes em toda experiência de gratidão[4]:

  • Alguém oferece um dom; aquele que o recebe pode estar sob alguma  obrigação ou dever, mas o sentido do dom vai de alguma forma para além  disso;
  • Aquele que recebe o dom, interpreta os motivos altruísticos do doador corretamente;
  • O dom provoca sentimentos positivos naquele que o está recebendo, e com  frequência os leva, por sua vez, a oferecer um ulterior dom – seja de  volta ao doador ou para alguma terceira parte.

A  gratidão parece envolver uma dinâmica permanente e autorrenovada de dom  e bondade. Poderíamos dizer que a gratidão é o a retribuição da  bondade. A gratidão traz alegria e contentamento; ela constrói relações  positivas de confiança e eleva a autoestima de quem está recebendo o  dom. Ela também encoraja o recipiente a passar adiante o presente.

Na  Contemplação para alcançar o amor, a gratidão é um tema central. Quando  Inácio diz que o amor consiste na comunicação recíproca do que cada um  possui, está implícito aqui o tema da gratidão. Mais ainda a gratidão  nos leva a desejar mais e mais sermos colocados no amor de Deus – um  desejo expressado mais eloquentemente na oração “Tomai, Senhor, e  recebei…”.  A força geradora que move esse amor para adiante é a  gratidão.

Gratidão  pode provir de várias experiências muito diversificadas: interações  positivas entre as pessoas (“Eu me sinto profundamente agradecido pelo  fato de ser abençoado com um íntimo círculo de amizades”); receber  gestos pessoais de bondade; superação de adversidades; saborear a  natureza; resolver um problema complexo; atravessar situações  aparentemente impossíveis.

Inácio,  conforme o testemunho unânime de seus biógrafos, foi uma pessoa muito  sensível aos benefícios recebidos de outros e sumamente agradecido[5].  Alguém tão bom seu conhecedor como Pedro de Ribadeneyra diz: “Entre  todas as virtudes que teve Nosso Pai, uma foi muito assinalada, a da  gratidão, na qual foi muito admirável”[6].

Inácio  estava convencido que Deus nos presenteou através de tudo que podemos  imaginar e nos chamou, por sua vez, a partilhar todos os dons que  recebemos com os outros.  O tema central de encontrar Deus em todas as  coisas depende das possibilidades ilimitadas da gratidão na vida diária.  Podemos reagir com admiração ao Concerto para piano de Mozart da mesma  forma que nós podemos ser transpassados pelo borbulhar de um riacho. Da  mesma forma, podemos lutar com as intrincadas equações da mecânica  quântica ou olhar atentamente como uma aranha tece metodicamente a sua  teia. Inácio nos recorda que todas essas coisas – e outras ainda – são  canais através dos quais a graça pode fluir. Se nós tivermos tempo para  contemplação, nosso foco poderá ficar mais aguçado e iremos crescer e  nos tornarmos buscadores de gratidão[7].

A  gratidão já foi definida como sendo “o sentimento agudo e intenso que  experimentamos ao saber-nos destinatários da ação benéfica e  desinteressada de outra pessoa”. Mas um sentimento é algo passageiro e  pode não deixar grandes pegadas. Um sentimento experimentado  ocasionalmente não permite falar que uma pessoa seja, de maneira  estável, agradecida ou mal-agradecida. Para que isso seja possível, a  gratidão deve ser um estado duradouro da personalidade. Um modo de estar  que predisponha a pessoa a tomar consciência maravilhada de ter  recebido um dom não buscado de alguém que não espera nada em troca, um  dom que provoca um estado emotivo que a livre de ressentimentos e que a  leva a reagir, por sua vez, de modo altruísta com os demais.

As  atitudes envolvidas na gratidão implicam o pensamento, o afeto e a  ação. A pessoa agradecida é alguém que chegou a cair na conta de ter  recebido algo de um doador que ainda que pareça assombrosamente  estranho, é desinteressado, alguém capaz de valorizar positivamente esse  dom recebido e de comover-se por uma gratidão que não implica exigência  de reciprocidade nem nenhuma obrigação, e se sente movido a atuar  fazendo o bem, não por cortesia nem por pressão externa, mais  impulsionados por uma genuína e profunda motivação a responder ao bem  por bem[8].

É  absolutamente essencial à gratidão a capacidade de perceber que o dom  recebido chega marcado pelo desinteresse do altruísmo, algo à primeira  vista incrível! Isso combate a convicção inculcada pela psicologia  dinâmica de que toda ação humana é egoísta. Por isso há um tom de  espanto na atitude agradecida: Não somente “por que a mim?” mas,  sobretudo, “como é possível essa generosidade?”.

A  psicologia tem se interessado muito sobre esse tema da gratidão. Ela se  dá conta que o agradecido é uma pessoa que não se sente defraudado pela  sua própria história ou, formulando de modo positivo, é uma pessoa  consciente de possuir uma certa riqueza interior inalienável. O  agradecido aprecia de modo superior à média aquilo que os demais  contribuíram para que ele tivesse chegado a ser o que é no momento  presente.  As pessoas agradecidas mostram uma tendência notável a  apreciar as pequenas satisfações e prazeres que costumam estar ao  alcance de todos, mas muito não os percebem. Nos últimos anos se tornou  especialmente popular a compreensão da personalidade por meio de 5  fatores básicos que seriam: Abertura x fechamento à experiência,  Responsabilidade x irresponsabilidade, Extroversão x introversão,  amabilidade x hostilidade, instabilidade emocional x estabilidade  emocional.  Ora, a pessoa capaz de agradecimento aparece, de modo  constante, como mais extrovertida, mais aberta, mais responsável e  amável. E certamente menos neurótica[9].

GRATIDÃO: O ECO DA GRAÇA

Mais  do que um sentimento transitório e efêmero, para Inácio a gratidão é  uma visão permanente de gratidão que reconhece o dom de tudo. A gratidão  não é possível até que sejamos capazes de aceitar conscientemente que  necessitamos de outros seres, que a vida é dar e receber, que é  necessário suportar a frustração dos próprios limites para poder gozar  de um mundo imenso de possibilidades que se estendem para mais além de  mim mesmo[10].

O  teólogo moral William C. Spohn captura o entendimento inaciano de  gratidão quando ele fala de gratidão como “o eco da graça”. Pode parecer  óbvio afirmar que a gratidão é um elemento que define a espiritualidade  inaciana. No entanto, a centralidade da gratidão recebeu escassa  atenção nas publicações escritas. Monika Hellwig afirma que “porque  baseada nos Exercícios Espirituais, a espiritualidade inaciana está  baseada numa gratidão intensa e reverência”. “Ela começa e reverte  continuamente em uma consciência da presença e poder e cuidado de Deus  em toda parte, para todos e em todo tempo”[11]. Esta gratidão que  perpassa todos os EE se mostra sobremaneira na CAA entendida como  meditação que reassume todo o processo dos EE como um aprendizado da  gratidão.

Qual  é a dinâmica básica inaciana que culmina no serviço e nas obras de  justiça que está em ação na Contemplação para Alcançar Amor e revela uma  estratégia que está presente em todos os Exercícios? Esta dinâmica  engloba um tríplice movimento:

Parte de um olhar contemplativo que aprecia o dom de toda realidade
Dirige-se às disposições afetivas ou atitudes de gratidão e amor
Atitudes  que conduzem ao serviço, dado que, para Inácio, o amor agradecido se  manifesta mais em obras do que em palavras (EE 230).
Em breve, para Inácio, a gratidão é o limiar para o amor. Em troca, o amor se torna um trampolim para o serviço!

[1]  Seguimos aqui as reflexões de Luís López-Yarto no seu artigo La  Gratitud, mucho más que una emoción pasajera, Manresa 85 (2013) 7-20.

[2] Miguel Cervantes, Don Quijote de la Mancha, 2ª. Parte, cap. LVIII.

[3] Carta de Inácio de Loyola a Simão Rodrigues de 18 de março de 1542. MHSI Epp. I, 192.

[4] Charles M. Shelton, Graced Gratitude, The Way 42/3 (July 2003) 140.

[5] Cf. Urbano Valero, “Quién más recibe más deudor se hace”. Gratitud y agradecimiento en San Ignacio de Loyola, 21-22.

[6] Dichos y hechos de N. P. Ignacio, c. 5 n. 75, ed. C. de Dalmases, Fontes narrativi II, Roma 1951, 492.

[7] Charles M. Shelton, Graced Gratitude, The Way 42/3 (July 2003) 147.

[8] Luís López-Yarto, La Gratitud, mucho más que una emoción pasajera, Manresa 85 (2013) 8.

[9] Luís López-Yarto, La Gratitud, mucho más que una emoción pasajera, 12-13.

[10] Luís López-Yarto, La Gratitud, mucho más que una emoción pasajera, 10.

[11] Monika K. Hellwig, “Finding God in All Things: A Spirituality for Today”, in Review of Ignatian Studies 28/2 (1997) 28.

*Alfredo Sampaio Costa SJ é jesuíta professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE.

O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente do Dom Total. O autor assume integral e exclusivamente responsabilidade pela sua opinião.

Sair da versão mobile