Os mandamentos de Francisco para uma economia justa
Entre os ‘conselhos’ do papa argentino estão a quebra das patentes de vacinas anticovid, o cuidado com o meio ambiente e que a mídia pare a lógica da pós-verdade e da desinformação
Gerard O’Connell*
America Magazine
O papa Francisco, em um discurso de abertura aos movimentos populares, um grupo que inclui ativistas que trabalham em uma ampla variedade de causas de justiça, pediu uma renda básica universal e a redução da jornada de trabalho. O Santo Padre também elogiou o movimento de protesto que se seguiu ao assassinato de George Floyd.
Em uma poderosa conversa de vídeo de 38 minutos com representantes desses movimentos em todos os continentes que certamente gerará discussões, o papa Francisco renovou seu apelo por uma renda básica universal e defendeu a redução da jornada de trabalho como solução parcial para a crise econômica de tantos milhões estão experimentando.
Francisco também fez apelos específicos “em nome de Deus” aos responsáveis por setores-chave da economia mundial de hoje, especialmente neste tempo de pandemia: as indústrias farmacêutica e alimentícia; as instituições financeiras e de crédito; os gigantes da tecnologia e das telecomunicações; a indústria de armas, bem como países poderosos, governos e políticos de todos os partidos.
Como forma de enfrentar as terríveis dificuldades econômicas de tantas pessoas no mundo e garantir a dignidade humana básica, e após consultar muitos especialistas na área, Francisco pediu “uma renda ou salário básico para que todos no mundo tenham acesso às necessidades mais básicas da vida”.
“É justo lutar por uma distribuição humana desses recursos, cabendo aos governos estabelecer esquemas tributários e redistributivos para que a riqueza de uma parte da sociedade seja repartida de forma justa, mas sem impor um ônus insuportável, principalmente sobre a classe média”, disse o papa.
Francisco também defendeu a redução da jornada de trabalho como forma de melhorar a situação das pessoas. “A renda mínima é uma forma de melhorar a situação das pessoas, a redução da jornada de trabalho é outra possibilidade e que precisa ser seriamente explorada”, afirmou. Também lembrou que no século 19 os trabalhadores cumpriam 12, 14 e 16 horas por dia. Ao atingir a jornada de trabalho de oito horas, nada desabou, ao contrário do que previam alguns setores.
“Eu insisto, trabalhar menos horas para que mais pessoas possam ter acesso ao mercado de trabalho é algo que precisamos explorar com certa urgência”, disse o papa. Francisco também apontou: “Eu acredito que essas medidas são necessárias, mas é claro que não são suficientes… contudo, eu queria mencioná-las porque são medidas possíveis e nos apontariam na direção certa”.
O público global do discurso representa milhões de ativistas sociais de movimentos populares em todos os continentes, incluindo aqueles que trabalham na grande economia, catadores de lixo, trabalhadores rurais e representantes dos povos indígenas.
Em outra parte de sua palestra, elogiou o movimento de protesto pela morte de George Floyd:
“Sabe o que vem à mente agora quando, junto com os movimentos populares, penso no Bom Samaritano? Você sabe o que vem à mente? Os protestos pela morte de George Floyd. É claro que esse tipo de reação contra a injustiça social, racial ou machista pode ser manipulada ou explorada por maquinações políticas ou o que for, mas o principal é que, naquele protesto contra essa morte, estava o Coletivo Samaritano que não é bobo! Este movimento não passou pelo outro lado da estrada quando viu o dano à dignidade humana causado por um abuso de poder. Os movimentos populares não são apenas poetas sociais, mas também samaritanos coletivos”.
Ao longo de seu pontificado, Francisco buscou encorajar movimentos e organizações de base em todo o mundo em seus esforços para melhorar a vida de milhões de pessoas que vivem na pobreza e na miséria. Pediu ao Pontifício Conselho Justiça e Paz que convocasse o primeiro Encontro Mundial dos Movimentos Populares e falou nesse encontro no Vaticano em outubro de 2014. Francisco proferiu uma palestra memorável a representantes desses movimentos em Santa Cruz, Bolívia, em junho de 2015, e se dirigiu a eles novamente em um terceiro encontro no Vaticano em novembro de 2016. Hoje foi seu quarto encontro com os movimentos populares.
Em sua palestra do sábado passado, para uma audiência virtual, o papa Francisco entregou uma mensagem poderosa ao lembrar como a pandemia revelou o real estado da economia mundial, onde milhões incontáveis estão lutando para sobreviver em meio à extrema pobreza. Desde a última vez em que se encontraram em Santa Cruz, disse: “Muita coisa aconteceu naquela época; muita coisa mudou. Essas mudanças marcam pontos sem volta, pontos de inflexão, encruzilhadas nas quais a humanidade deve fazer escolhas. E novos momentos de encontro, discernimento e ação conjunta são necessários. Cada pessoa, cada organização, cada país e o mundo inteiro precisam buscar momentos para refletir, discernir e escolher porque retornar às mentalidades anteriores seria verdadeiramente suicida e, se me permitem insistir um pouco, ecocida e genocida”.
Francisco falou: “A mudança pessoal é necessária, mas também é indispensável ajustar nossos modelos socioeconômicos para que tenham um rosto humano porque muitos modelos o perderam. E pensando nessas situações, eu me torno uma peste para eles com minhas perguntas”.
Ciente de que existem muitos, até mesmo na Igreja Católica, que o criticam pelo que diz sobre as questões de justiça social, Francisco em sua fala enfatizou que tudo o que está pedindo e dizendo está baseado no ensinamento social da Igreja e está em consonância com o que seus predecessores, incluindo João Paulo II e Bento XVI, ensinaram. “O papa não deve parar de mencionar esse ensino, mesmo que muitas vezes incomode as pessoas porque o que está em jogo não é o papa, mas o Evangelho”.
Em sua palestra, Francisco fez nove chamados explícitos “em nome de Deus” aos responsáveis por diferentes setores da economia mundial.
1. Francisco pediu “aos grandes laboratórios farmacêuticos que liberassem as patentes” das vacinas Covid-19. Ele apelou dizendo: “Façam um gesto de humanidade e permitam que cada país, cada povo, cada ser humano tenha acesso às vacinas”. Lembrou que há países “onde apenas três ou quatro por cento dos habitantes foram vacinados”. Embora não tenha mencionado isso, a maioria dos países da África se enquadra nessa categoria.
2. Francisco apelou a grupos financeiros e instituições de crédito internacionais “para permitir que os países pobres garantam ‘as necessidades básicas de seu povo’ e cancelem as dívidas que tantas vezes são contraídas contra os interesses desses mesmos povos”.
3. Francisco implorou “às grandes indústrias extrativas – mineração, petróleo, silvicultura, imobiliária, agronegócio – que parem de destruir florestas, pântanos e montanhas, parem de poluir rios e mares, parem de envenenar alimentos e pessoas”.
4. Francisco pediu às grandes corporações de alimentos “que parem de impor sistemas monopolísticos de produção e distribuição que inflacionam os preços e acabam negando pão aos famintos”. O papa destacou “o flagelo da crise alimentar” no mundo e observou que só neste ano “20 milhões de pessoas foram arrastadas para um nível extremo de insegurança alimentar” enquanto “aumentou a miséria” e “o preço dos alimentos subiu nitidamente”.
O Santo Padre mencionou um número terrível de pessoas sofrendo na Síria, no Haiti, no Congo, no Senegal, no Iêmen, no Sudão do Sul e em outros lugares. Ele declarou que “as mortes anuais por fome podem exceder as de Covid!”.
5. Francisco apelou aos fabricantes e negociantes de armas “para parar completamente suas atividades” porque, como disse, “isso fomenta a violência e a guerra, contribui para aqueles jogos geopolíticos terríveis que custam milhões de vidas desabrigadas e milhões de mortos”.
6. Francisco implorou “que os gigantes da tecnologia parem de explorar a fraqueza humana, a vulnerabilidade das pessoas, em prol dos lucros, sem se preocupar com a disseminação de discurso de ódio, preparação, notícias falsas, teorias da conspiração e manipulação política”.
7. Francisco pediu “aos gigantes das telecomunicações que facilitem o acesso a material educacional e conectividade para professores através da internet, para que crianças pobres possam ser educadas mesmo na quarentena”.
8. Francisco pediu que “a mídia pare a lógica da pós-verdade, desinformação, difamação, calúnia e a atração doentia pela sujeira e pelo escândalo, e contribua para a fraternidade humana e a empatia com aqueles que estão mais profundamente prejudicados”.
9. Francisco apelou aos países poderosos “para que parem de agredir, com bloqueios e sanções unilaterais contra qualquer país em qualquer lugar do planeta” e disse: “Não ao neocolonialismo”. Pediu que a resolução de conflitos seja feita em fóruns multilaterais como as Nações Unidas.
O papa Francisco emitiu seu veredito sobre o sistema econômico atual, dizendo: “Este sistema, com sua implacável lógica de lucro, está escapando de todo controle humano”. Mas, como acrescentou: “É hora de desacelerar a locomotiva, uma locomotiva fora de controle arremessando-se para o abismo. Ainda há tempo”.
O Santo Padre pediu aos governos e políticos de todos os partidos “que representem seu povo e trabalhem para o bem comum”. Também disse: “Pare de ouvir exclusivamente as elites econômicas, que tantas vezes proferem ideologias superficiais que ignoram os reais dilemas da humanidade” e os encorajou a servir “as pessoas que exigem terra, trabalho, moradia e boa vida”.
Como ele havia feito com o grande imã de Al-Azhar quando assinaram o documento sobre a Fraternidade Humana em Abu Dhabi em 4 de fevereiro de 2019, o papa Francisco novamente pediu a seus companheiros líderes religiosos para “nunca usarem o nome de Deus para fomente guerras ou golpes”. Em vez disso, Francisco os convidou: “Apoiemos os povos, os trabalhadores, os humildes e lutemos junto com eles para que o desenvolvimento humano integral se torne uma realidade”.
Francisco também destacou que “é preciso enfrentar juntos os discursos populistas de intolerância, xenofobia e aporofobia, que é o ódio aos pobres”. Disse que, “como tudo o que nos leva à indiferença, à meritocracia e ao individualismo, estas narrativas servem apenas para dividir os nossos povos e para minar e anular a nossa capacidade poética, a capacidade de sonhar juntos”.
Francisco concluiu instando os movimentos populares a continuarem seus esforços para construir uma nova economia e “sonhar” com novas formas de fazê-lo.
Publicado originalmente em America Magazine.
Traduzido por Ramón Lara
*Gerard O’Connell é correspondente do Vaticano na América e autor de “The Election of Pope Francis: An Inside Account of the Conclave that Changed History [A Eleição do Papa Francisco: Uma História Interna do Conclave que Mudou a História]. Ele cobre o Vaticano desde 1985. Siga-o em @gerryorome