Ação Direta de Irresponsabilidade.
Bolsonaro age contra governadores para manter os seus 30% sem ser atrapalhado.
‘Com as mortes chegando a 300 mil, não se pode descartar um outro tipo de ação contra o presidente: o impeachment’
‘Com as mortes chegando a 300 mil, não se pode descartar um outro tipo de ação contra o presidente: o impeachment’
Mary Zaidan*
Ele nunca teve qualquer respeito pelo Congresso e demais esferas de poder, sempre fez pouco caso das instituições. (Des)governa pelas redes sociais, escorraçando qualquer um que dele ouse discordar. Agora, via uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) contra restrições para deter a circulação do coronavírus impostas pelos governadores do Distrito Federal, Bahia e Rio Grande do Sul, o presidente Jair Bolsonaro materializa em juridiquês a via direta que sempre desejou, sem ser atrapalhado por opositores e intermediários.
De quebra, tenta mais uma vez jogar nas costas de outros os custos e as consequências de sua irresponsabilidade.
As 24 páginas da Adin traduzem para a linguagem técnica e formal as bestices ditas sobre a pandemia quase todos os dias no cercadinho do Alvorada e nas lives semanais. Expõem seu absoluto descaso com a doença que já matou quase 300 mil brasileiros e a falsa rivalidade entre saúde e economia, além de impor a liberdade individual acima da responsabilidade coletiva.
Nos detalhes, a Adin esclarece pretensões que vão muito além da peça jurídica.
Além de se apresentar como defensor do povo diante da tirania de governadores e prefeitos – um papel e tanto para quem virou a encarnação do genocida -, Bolsonaro se indispõe abertamente com quase a totalidade dos governadores em favor dos 30% contrários às medidas de isolamento. É esse o público que ele quer manter cativo. Para ir às ruas em seu nome e defendê-lo das consequências nefastas da pandemia, das mortes em série, dos hospitais abarrotados, do desemprego e da fome.
A questão é matemática.
Diante da escalada progressiva de mortes pelo coronavírus nos últimos 25 dias e da acelerada queda de popularidade e confiança, Bolsonaro teria duas saídas.
A primeira, uma inversão radical em sua biruta desvairada, ele usou por um par de dias. Passou a colocar máscara, parou de provocar aglomerações em eventos lucrativos para campanha e inúteis para o país. Demitiu o obediente e atrapalhado general do Ministério da Saúde. A outra era a de agradar a sua galera, o terço fiel, cerca de 15% fidelíssimos.
Entre os pássaros que voam e os que tem nas mãos, preferiu segurar os seus na gaiola.
Até porque Bolsonaro, cujo ídolo Donald Trump foi descartado nas urnas, sente o peso de ter sido um dos poucos líderes mundiais a negar taxativamente a pandemia e a ciência. E o único que mesmo depois das pilhas de mortos ainda não se converteu.
Está careca de saber que é difícil agora, e será ainda mais árduo durante a campanha de 2022, desdizer o que disse sobre vacinas – “falar fino”, “virar jacaré” – e a doença que banalizou – “gripezinha”, “e dai?”. Tudo registrado em vídeo, a um google de distância. Seus adversários não deixarão os eleitores esquecerem do “país de maricas” ou do “não sou coveiro”, e tantas outras agressões desumanas desferidas cotidianamente enquanto famílias e amigos choravam seus mortos.
Bolsonaro também sabe e a Advocacia-Geral da União está cansada de saber que as restrições impostas por governadores e prefeitos para tentar deter a contaminação nada têm a ver com estado de sítio. Ele tem repetido o termo propositalmente, para deixar o cheiro de golpe no ar.
O Brasil de Bolsonaro não tem 290 mil mortos, as UTIs não estão lotadas, não faltam profissionais de saúde nem medicamentos. O fechamento do comércio e a restrição da circulação de pessoas têm o único intuito de prejudicar o seu governo. “Todo local está morrendo gente (sic), aqui virou guerra contra o presidente”, defendeu-se diante de seus apoiadores.
Não, presidente. Nos locais com aumento de contágio, por menor que seja, os presidentes lideram o combate. Decretam distanciamento social ou fecham tudo, promovem o verdadeiro lockdown, que cidade brasileira alguma viu ainda. Imunizam seu povo. Não fazem comercial de remédios ineficazes nem propagam notícias falsas. Muito menos perdem tempo em guerrilhas contra governadores ou qualquer outro poder. Têm mais o que fazer.
Diante de tamanho descalabro, não se pode perder de vista um outro tipo de Adin, desta feita uma Ação Direta de Irresponsabilidade contra Bolsonaro, vulgo impeachment.
*Mary Zaidan é jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia e Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat/Veja.
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