À luz da Páscoa, somos convidados a reinventar nossa maneira de viver.
Reflexão sobre o Evangelho do 5º domingo da Quaresma: João 12,20-33
Adroaldo Palaoro*
Quem se apega à sua vida, perde-a (Jo 12,25)
Estamos chegando ao final do tempo quaresmal; abre-se a porta para a intensa vivência pascal. Percorremos este caminho vivo de jejum, esmola e oração, centrados na pessoa de Jesus, para aprender d’Ele como viver de maneira mais oblativa, aberta, solidária. Tem sido um caminho de intensidade humana? Temos colocado o tom de nossa fé na direção da Páscoa?
O final da quaresma é tempo de olhar para trás com muita gratidão: tal atitude nos capacita para continuar olhando para frente, subindo com Jesus e seus discípulos a Jerusalém. Sempre há oportunidade para consolidar nossa vida e enraizar nossa fé. Não permitamos que continuemos passando o tempo como se nada surpreendente pudesse acontecer!
À luz da Páscoa somos movidos a reinventar continuamente a nossa vida. Há uma outra forma de vida que subjaz debaixo daquela que levamos cada dia: uma vida mais calma, mais consciente, mais autêntica. Uma vida de pequenas coisas, de gestos carregados de ternura, de rotinas habitadas que são vividas como novidade, de silêncios que dançam com as palavras.
Inventar vem da expressão latina inventio-onis que significa “encontrar algo” que até agora não se havia descoberto. Inventores são aqueles que descobrem algo até então oculto.
Por detrás da pandemia, está sendo oferecida a todos nós uma mudança de rumo na humanidade. Estamos sendo forçados a quebrar o ritmo estressante e apressado que levávamos; nosso planeta respira, nossas cidades estão se purificando de tanta contaminação acumulada; estamos encontrando formas novas de trabalho e de educação escolar; estamos ficando mais sóbrios, contentando-nos com o necessário; temos descoberto outra forma de inter-relação e de mais intensidade no amor…
O apelo de Jesus, no Evangelho deste domingo, é para “perder” nossa vida, no sentido de não nos apegar de maneira egóica a ela e abrir-nos para recebe uma vida maior, nossa verdadeira vida, a Vida de Deus em nós. Precisamos nos destravar, abandonar nossas medidas de segurança, libertar-nos do domínio cego do ego, para que possa transparecer o que realmente somos, nossa dignidade mais profunda. Não é o autocentrar-nos que confere dignidade à existência, mas o descentrar-nos e deslocar-nos em favor dos outros.
Aquele que “se apega à sua vida”, ou seja, aquele que quer estar bem, não quer ter compromissos, não quer se envolver com as situações exigentes, quer estar à margem da realidade que pede uma presença diferente, esse “perderá sua vida”. Que vida mais atrofiada quando se vive bem comodamente, bem tranquilo, bem instalado, bem relacionado politicamente, economicamente, socialmente.
Mas aquele que, por amor ao Reino, se desinstala, acompanha o povo, se solidariza com o sofrimento do pobre, encarna-se e faz sua a dor do outro esse “ganhará” a vida. Sua vida transformar-se-á em Vida. Libertam o mundo todos aqueles e aquelas que fazem de suas vidas uma doação, um oferecimento. Assim, se deixam atravessar por Deus, puro Dom de Si, Amor que não se reserva a Si mesmo.
É gratificante fazer memória de tantos homens e mulheres que foram presenças de misericórdia e, à maneira de Jesus, consumiram suas vidas em favor da vida.
Histórias silenciosas de tantas pessoas que com seu compromisso ajudaram os outros a viver. Pessoas que revelaram a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregaram suas vidas sem aparecer nas redes sociais, sem vozes que as proclamassem; foram como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
“Se o grão de trigo não morre”, ou seja, se o ser humano não faz de sua vida um dom para os outros, se ele não investe a sua vida em favor da vida, acaba perdendo-se a si mesmo. Esta é a mensagem radical deste quinto domingo da quaresma: “morrer de vida”, não de morte, morrer fazendo que outros vivam, numa efusão de amor. Trata-se de “morrer de tanto viver”, nas diferentes dimensões da vida: individual, familiar, comunitário, social. Esse é o sentido da Cruz cristã: não é cruz vazia, nem um “peso morto”. É perda que se converte em ganho.
Sabemos que, à medida que nosso ego aumenta, ele se distancia da vida dos outros e só se ocupa em conservar a sua, buscando saciar sua fome devoradora para conquistar, acumular, ser o centro…
Isso lhe faz perder a capacidade de assombrar-se e de deixar-se afetar pela alegria e pela dor dos outros. Tudo se converte em meio e instrumento para sua própria gratificação. O auge da afirmação de si mesmo se contrasta com a afirmação de Jesus, vista como aberração humana: “aquele que se apega à sua vida, perde-a”. Qual é a pérola de grande valor que se oculta nesta afirmação? Onde nos quer conduzir Jesus?
É um fato central de nossa existência que a própria vida, por mais valiosa que seja, não se encontra sob nosso controle. Então precisamos nos soltar, deixar de apegar-nos a nós mesmos, abrir as mãos, abandonar nossa auto-afirmação, para que Deus possa entrar e atuar livremente em nosso interior.
Jesus recorre a uma brevíssima parábola, para fundamentar isso.
Só o grão de trigo que morre dá muito fruto. Esta parábola apresenta mais uma vez, e de outro modo, a lição fundamental do Evangelho inteiro, o ponto máximo da mensagem de Jesus: o amor oblativo, o amor que se entrega a si mesmo, e que nesse perder-se a si mesmo, nesse morrer a si mesmo, gera a vida.
O ser humano se caracteriza por ser capaz de amar, por ser capaz de sair de si mesmo e entregar sua vida ou entregar-se a si mesmo por amor. A humanização ou hominização seria esse “descentramento” de si mesmo, que é centramento nos demais e no amor. A parábola do grão de trigo que morre expressa o ponto máximo dessa maturação da Humanidade; tanto é verdade que pode ser considerada como uma expressão do cume do amor. No fundo, esta parábola equivale ao mandamento novo:
“Este é o meu mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos amei; não há maior prova de amor que dar a vida” .
As palavras de Jesus têm também aqui a pretensão de síntese: aí se encerra toda a mensagem do Evangelho. E, na realidade, aí se encerra também toda mensagem religiosa, pois também as outras religiões chegaram a descobrir o amor, a compaixão, a solidariedade, o descentramento de si como a essência da religião. Jesus é a expressão máxima da humanidade que busca e deixa emergir o melhor que há em seu interior.
A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Porque na vitória da Vida entregue, a vida ganha sentido, avança, como uma torrente que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.
A vida não se conta pelas respirações, mas pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem a dimensão do milagre e carrega no seu interior o destino da ressurreição.
A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada em plenitude. A certeza de nossa fé em Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a ir tirando do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e imortalidade, e ir encontrando uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de outros.
Texto bíblico: Jo 12,20-33
Na oração: Se o grão de trigo não cai na terra e não morre, fica estéril. O grão de trigo precisa entregar-se, enterrar-se, perder-se para ser fecundo. Desate a Vida de Deus que já está em você!
- Você sente resistência em fazer de sua vida uma contínua oferta em favor da vida, nos pequenos gestos de cada dia ou nos grandes momentos decisivos?
- Você captou que o centro da mensagem do Evangelho é fazer da vida uma contínua doação por amor? Está disposto(a) a aceitar essa “morte” para viver mais plenamente?
- Sua prática cristã se reduz a cumprir ritos, devoções, práticas piedosas ou se expressa na vivência do encontro e do diálogo amoroso, como pede a Campanha da Fraternidade deste ano?
*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais