Sem esperança e sem consolo, o que resta é denúncia do pecado.
Não consigo escrever sobre esperança, não agora.
Eu gostaria, sinceramente, de conseguir escrever sobre esperança, esta virtude tão necessária aos nossos tempos. Mas não consigo. O desalento me atinge fortemente: para quem conhece a história do Brasil sabe que esta situação absurdamente cruel que vivemos, socialmente, é resultado de um projeto de poder de morte, que gera privilégios e lucros para uma minoria que detém as forças reais de comando do país.
Nossa nação tem futuro, mas esse futuro não tem chances de se acercar de nós, enquanto a mesquinhez e canalhice dos poderosos persistirem.
A calamidade pública à qual estamos imersos, por conta da pandemia de Covid-19, é infinitamente pior para nós, do que para cidadãos e cidadãs de países cujas lideranças políticas não fugiram da responsabilidade no enfrentamento desse mal que nos tomou. Quem absolve o atual mandatário da República, da culpa pelo caos que se instalou no país, age de má-fé, porque o tempo da ingenuidade – se é que este tempo fosse possível, diante de tudo o que estava já anunciado aos quatro cantos – já passou!
Começamos com a minimização cruel do problema, por parte do presidente, chamando a infecção de “gripezinha e resfriadinho”, enquanto o mundo todo estava em alerta para a gravidade da situação; chegamos a um cruel “e daí?”, quando a imprensa levantou a questão do número de mortes nos primeiros meses da pandemia; tudo isso, entremeado de aglomerações politiqueiras e personalistas, que incitavam os seus seguidores a desconsiderar as orientações sanitárias de precaução; agora, o luto de mais de 260 mil famílias e o constante apelo a que haja responsabilidade do poder público e também da população, foi chamado de “mimimi” e choradeira.
Fora isso, o comensal da morte fez tudo o que pôde, no poder de sua caneta, para impedir que providências recomendadas com base científica e de rigor internacional fossem tomadas.
Como teólogo, que já se dedicou longos anos à pesquisa e ensino da teologia litúrgica, gostaria de escrever, também, sobre o sacramento da Unção dos Enfermos, bem como sobre as Exéquias, que seriam temas tão pertinentes, teologicamente, para ajudar no processo de de consolo aos sofredores, para este mal sanitário que enfrentamos. Os cristãos e cristãs católicos são chamados a ler o sofrimento da enfermidade e da morte, à luz do Mistério Pascal de Cristo: em nossa carne, completamos o sofrimento de Cristo, diz Paulo (cf. Colossenses 1,24); e isso nos leva à esperança da Ressurreição, no cotidiano mesmo da vida.
Não seria uma aceitação sem critérios da dor e do sofrimento, mas um caminho espiritual de ler, à luz da fé, o sofrimento, como caminho para nossa incorporação à vida de Cristo.
Mas, como pautar esta reflexão, num contexto em que os perigos da transmissão do vírus nos impele ao distanciamento social, de modo que ministros ordenados não podem administrar o sacramento aos enfermos, nem presidir os ritos finais da vida de um cristão? Mais: que força teríamos para refletir sobre os aprendizados espirituais do sofrimento, quando famílias “recebem” os cadáveres de seus entes queridos, envoltos em sacos pretos e com caixões lacrados, sendo impossibilitados de cumprir os ritos fúnebres, tão essenciais ao processo de luto?
Não, não consigo escrever sobre esperança, não agora. Não consigo escrever sobre o consolo, ao qual a pastoral deveria se dedicar, neste momento de crise. O grito preso na garganta é o de denúncia de um pecado; do pecado de um político – e de todos os seus seguidores e claque – que se diz cristão, mas que envergonha o Evangelho, porque serve à morte e a si mesmo.
Fico lembrando do rei Davi, segundo rei em Israel. Para a historiografia bíblica, Davi é um modelo de rei: servidor do direito e da justiça.
A Escritura, porém, não apaga de Davi a responsabilidade de um pecado seu, nascido do egoísmo e do abuso de poder, que acabou por levar um inocente à morte. Davi, homem cheio das virtudes, que o alçaram ao modelo de ideal bíblico de liderança política, soube reconhecer o seu pecado, arrepender-se e se converter.
Ainda assim, segundo a perspectiva religiosa retributiva, sem pecado não ficou sem consequências. E o nosso presidente, homem tão aparentemente sem virtudes e humanidade, será também capaz? Será que chegará um tempo, no qual será, de acordo com o peso da lei, responsabilizado por seus crimes? São tempos de impiedade: não há discurso de esperança nem de consolo que preceda a denúncia do pecado, tão devastador para nossa gente!
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo e professor. Coordena a editoria de religião deste portal. É co-autor do livro Teologia no século 21: novos contextos e fronteiras (Saber Criativo, 2020). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
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