Viver Evangelizando

Quaresma

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Quaresma.

Arrancarei toda erva daninha – ciúme, inveja, ira – do canteiro de meus amores e cultivarei copas frondosas de quaresmeiras coloridas de ternura. Serei perdulário com o bom humor e espalharei alegria como o ar que nos é dado respirar

Contemplarei as montanhas ocas de minha terra e derramarei uma lágrima por seus úteros arrancados e sonegados ao meu povo (Silviu Zidaru / Unsplash)

Entro na Quaresma sem fantasia, disposto às abstinências que resgatam, no mais íntimo de mim mesmo, a minha verdadeira identidade.

Calarei a língua ferina e não macularei a fama alheia exposta em público no varal de minhas cordas vocais.

Não darei ouvidos a inconfidências, nem ao ruído ensurdecedor das palavras vãs de quem só escuta a própria voz. Fecharei os olhos para ver melhor e abrirei as janelas à revoada dos anjos. Contemplarei as montanhas ocas de minha terra e derramarei uma lágrima por seus úteros arrancados e sonegados ao meu povo.

Riscarei de meu dicionário o vocábulo competitividade e com aquarelas de utopias gravarei no coração solidariedade. Irei ao encontro de quem ainda luta por direitos animais: comer, beber, educar a cria e abrigar-se das intempéries. Só assim costurarei  minha humanidade esgarçada.

Jejuarei da ânsia consumista e ofertarei meu supérfluo tão necessário ao próximo.

Abrirei a janela do carro e afagarei as crianças de rua, filhos de minha imobilidade frente a tantas injustiças. Pagarei, com juros, a minha dívida social.

Farei de Jesus parceiro de aventuras e deixarei que o seu Espírito engravide o meu. Buscarei o silêncio orante e meditarei para inebriar-me da espiritualidade do conflito.

Adotarei o Sermão da Montanha como estatuto pessoal e acertarei meus passos nas trilhas de Gandhi, Che Guevara e Luther King.

Arrancarei toda erva daninha – ciúme, inveja, ira – do canteiro de meus amores e cultivarei copas frondosas de quaresmeiras coloridas de ternura. Serei perdulário com o bom humor e espalharei alegria como o ar que nos é dado respirar.

Direi não às drogas – as que me consomem horas de vida no cuidado envaidecido do meu corpo e as que me aprisionam no medo de lutar contra as iniquidades. Desfraldarei a bandeira de minha indignidade e revelarei esperanças que, olhos no futuro, me fazem acreditar em um belo horizonte.

Peregrino solitário e solidário, irei às fontes do Transcendente. Ao encontrar meu próprio poço, mergulharei como um menino em suas águas profundas, até que o Pai de Amor me acolha em seus braços, dando-me de beber o vinho pascal do homem novo.

Frei Betto é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de “A Obra do Artista – uma visão holística do Universo”, “Um homem chamado Jesus”, “Batismo de Sangue”, “A Mosca Azul”, entre outros.
Fonte: Dom Total
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