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Os cristãos e a peste

Os cristãos e a peste.

Sim, em outras épocas, epidemias transformaram os cristãos em pessoas melhores.
Papa Francisco durante Urbi et Orbi extraordinária pelo fim da pandemia em março de 2020.

O papa Francisco, em março do ano passado, rezou pelo fim da pandemia, evocando uma antiga devoção da diocese de Roma: o crucifixo milagroso da Igreja de São Marcelo.

O objeto sacro, que já sobreviveu a um incêndio que destruiu completamente o templo que o abrigava, foi responsável, de acordo com a tradição católica, pelo fim da peste do século 16 que devastou a capital. Essa imagem também protagonizou o ‘Dia do Perdão’, quando João Paulo II, no jubileu dos anos 2000, se retratou, em nome da Igreja, por todos os crimes e omissões cometidos pela instituição ao longo dos séculos.

Enquanto os católicos se digladiam em busca de uma resposta ‘teológica’ para a crise, o papa dá a receita mais simples de todas: é hora retirar da gaveta as práticas de devoção popular e praticar a solidariedade.

Era justamente o que os cristãos de outras épocas faziam.

Quando Francisco convoca o “ano de São José”, pensa não só na pandemia, mas nesse retorno à essência da espiritualidade, propondo uma devoção acessível e simples. Foi também no século 16 que orações e rosários em honra ao pai adotivo de Jesus começaram a aparecer com mais frequência. Lembrando que, nesse período, a Europa vivia uma série de convulsões sociais.

E no tempo dos primeiros cristãos…

A gravidade da peste do século 3 chegou ao conhecimento dos historiadores graças a um texto do bispo Cipriano. Ainda não se sabe, exatamente, que tipo de doença era essa, mas é possível explorar, através dessas poucas fontes disponíveis, como os cristãos se comportaram perante essa situação dramática.

Dionísio de Alexandria diz que os pagãos, nessa época, abandonavam seus parentes à própria sorte, para evitar o contágio. Já os cristãos acabaram morrendo em decorrência da doença, porque trabalhavam, dia e noite, na assistência daqueles que tinham sido abandonados por essas famílias.

Nunca o mundo antigo havia visto uma rede de solidariedade tão significativa, o que teria, na opinião de alguns historiadores, atraído a atenção de algumas pessoas para a religião nascente.

Por mais que os textos sejam dotados de recursos propagandísticos – ou apologéticos – é certo que a caridade e a fé a toda prova eram as características que mais distinguiam os cristãos dos demais cidadãos do império.

Olhando hoje, para a nossa realidade, parece que estamos longe de assumir esse tipo de postura. Os livros de novena seguem empoeirados, enquanto muitas línguas estão afiadas para perseguir quem tem feito algo pelo próximo. Cobram a abertura das igrejas enquanto o coração se fecha, ainda mais, para quem mais precisa.

O luto pelos mortos tem dado lugar às justificativas estratosféricas perante ideologias assassinas.

Algumas pessoas, de fora da Igreja, odeiam alguns cristãos não mais por causa da doutrina que defendem, mas por causa da distorção e instrumentalização da fé que praticam. Muitos membros da Igreja perderam, nesta pandemia, a oportunidade única de atrair as pessoas para um cristianismo professado e vivido, cujo amor é a palavra de ordem, não as agendas políticas de líderes pseudocristãos.

E é justamente essa chamada de atenção que Francisco nos faz.

O papa atual está muito preocupado em resgatar a essência do cristianismo, enquanto muitos trabalham para negligenciá-lo através de um falso zelo religioso.

Como o cristianismo sairá dessa pandemia? – pergunto. Se depender de Francisco, mais fortalecido. Se depender de outros, será uma religião que não tem credibilidade nem para falar de Jesus Cristo mais.

*Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras

Fonte: Dom Total

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