Diante do antiprofetismo, que as pedras falem!
Crise do cristianismo atual tem como fator o contratestemunho e a antipedagogia de cristãos.
O relógio marca quase dezesseis horas. Os passageiros, acomodados no transporte público, aguardam a saída do ônibus.
O mundo inteiro enfrenta uma pandemia com altos índices de letalidade, de um vírus que é transmitido, sobretudo, por nossas vias aéreas. Fora as vacinas, às quais a imensa maioria dos brasileiros e brasileiras não teve acesso ainda, as melhores formas de prevenção à doença são o uso de máscaras e a limpeza das mãos, bem como o distanciamento social.
Isso está sendo, há um ano, amplamente divulgado.
O relógio marca quase dezesseis horas. Dentro do ônibus, repito, os passageiros aguardam a saída do ônibus. Um casal adentra o veículo e se apresenta como sendo esposos e evangelizadores: ambos, com máscaras no queixo, pregam e distribuem livretos aos passageiros.
Esta poderia ser nomeada como uma crônica do contratestemunho cristão. Em se tratando de uma palavra religiosa, aparentemente bem-intencionada, quem haveria de considerar como um risco à saúde pública, um casal pregando – e, sem sombra de dúvidas, cuspindo – sobre os passageiros, e entregando livretos de mão em mão?
Os inocentes pegaram os livretos; os que não compraram, devolveram ao casal que, em outros ônibus, distribuiriam, de novo, de mão em mão. Não há oração em nome do Senhor Jesus que apazigue tamanha irresponsabilidade social e impertinência religiosa.
Na semana seguinte, o mesmo se repetiu, sem tirar nem pôr, agora com outro “evangelizador”.
Numa certa ocasião, narra-nos o Evangelho de Lucas (cf. 10,40), os fariseus instaram a Jesus que ele repreendesse seus discípulos, ao passo que Jesus lhes respondeu que, se os discípulos se calassem, que as pedras gritariam. Tal resposta de Jesus inspirou uma importante canção para o catolicismo brasileiro, na qual os “discípulos” aparecem como “profetas”.
Observando o destempero e o despreparo de muitos que se consideram evangelizadores, sem que tenham boa formação para exercício de tão importante missão, consideramos que o melhor, e mais promissor ao Evangelho, seria se as pedras passassem a gritar, uma vez que o calar dos discípulos se faz muito necessário.
Um dos fatores mais significativos para a crise do cristianismo atual é, longe de dúvidas, o contratestemunho e a antipedagogia de cristãos e cristãs.
Que ressonância com bons frutos acontece, na transmissão do Evangelho, quando a vida de pessoas é colocada em risco, porque alguém resolve “pregar” em um local público? Que efeitos uma oração têm, sobre a vida das pessoas, quando feita de modo irresponsável, que chega aos ouvintes – que não tiveram opção de escolha de compor aquela cena, ou não – junto com cuspes e ruídos sonoros?
Evangelização é coisa séria! Exige responsabilidade, boa capacitação…
Não são os cristãos que adoram o clichê de que “Deus não escolhe os capacitados, mas que capacita os escolhidos”? Qual a falha nesse processo de capacitação está a ocorrer, quando pessoas, valendo-se muitas vezes de apenas boa-vontade, colocam-se como enviadas especiais do Senhor, para transformar vidas?
Difícil não pensar que a abjeção à pregação e mensagem cristãs, em nosso mundo atual, sobretudo em meio às juventudes e pessoas mais esclarecidas, seja por inteira responsabilidade de muitos cristãos e cristãs, incapazes de encarnarem um autêntico testemunho do Evangelho do Reino.
Ou lideranças religiosas, verdadeiramente comprometidas com sua missão, dedicam-se à formação de novas lideranças capazes de evangelizar, de fato, ou nos quedará a única opção de esperar por um milagre, de que as pedras falem!
*Felipe Magalhães Francisco é teólogo e professor. Coordena a editoria de religião deste portal. É co-autor do livro Teologia no século 21: novos contextos e fronteiras (Saber Criativo, 2020). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.