Francisco ‘metralha’ moralistas, defende mulheres e faz revelações.
Em novo livro, lançado no dia 1 de dezembro, chamado ‘Vamos sonhar juntos?’, o papa aborda assuntos da atualidade e pautas prioritárias de seu pontificado
Comecei a ler o livro calmamente. Pensei, de início, que seria uma leitura “como outra qualquer”; mais uma para acrescentar ao meu arquivo sobre o papa Francisco. Estava enganada. A cada página que eu lia, me deparava com uma surpresa. Depois de tantos anos cobrindo o Vaticano, mais uma vez, atesto: o imprevisível é o motor do atual pontificado. É o “dinamismo bergogliano” que até os jornalistas mais experientes têm dificuldade para acompanhar.
Francisco não só trata de temas polêmicos nesse livro, mas tira os filtros ao dizer o que pensa a respeito de cada um deles. Se a encíclica Fratelli Tutti, a terceira do seu pontificado, publicada em outubro deste ano, foi o seu testamento magisterial, essa última entrevista, concedida ao seu biógrafo, o jornalista inglês Austen Ivereigh, é o seu testamento pessoal. Trata-se de uma reflexão sobre o mundo pós-pandemia (uma lista de conselhos para o próximo papa, quem sabe?).
Ele cita Chesterton, Dostoiévski e Romano Guardini (cuja teologia é tema de seu doutorado não concluído na Alemanha). A intenção era atingir um público mais amplo. Esse foi o acordo. Estava claro isso quando o pontífice e Ivereigh se reuniram para compor uma série de entrevistas sobre temas variados. O pós-quarentena fez o papa refletir a respeito de uma série de coisas.
Foram três meses de colóquios com o escritor inglês (entre junho e agosto deste ano; ou seja, logo depois da reabertura da Itália após 4 meses de lockdown total).
Diferente de um documento pontifício, o papa participou diretamente da organização do texto – sem intermediários – e revisou palavra por palavra. Coube ao jornalista condensar, dentro de uma sequência lógica, as falas do santo padre, juntamente com outros colaboradores. Também foi Francisco quem definiu os capítulos e impôs algumas condições quando aceitou o convite do jornalista. Queria que, no texto, a filosofia de vida da congregação a qual pertence estivesse presente. O resultado foi um tratado jesuíta sobre como orientar a própria vida, tanto em âmbito cristão quanto social em tempos sombrios como estes. É o método ver-julgar-agir.
Mais uma vez, o pontífice fala que “está no fim da vida”, algo que fez questão de frisar em entrevista à agência italiana Adnkronos, publicada há dois meses. Por isso, escreve um texto visionário para que os cristãos tomem consciência, de uma vez por todas, que uma fé sem testemunho está fadada a desaparecer.
Francisco senta a mão nos moralistas na mesma medida em que “bate” nos católicos “de vanguarda” que defendem ideais que não condizem com o Evangelho e com a Tradição, segundo a visão do santo padre.
Ele tem consciência de que tudo o que ele disser daqui pra frente entrará para a cartilha de conceitos-chave do seu papado. Que o seu sucessor se prepare. A Igreja pós-Francisco será exigente. Já expurgou o espírito de corte e quer mantê-lo distante. Está pronta para escancarar as suas portas, ainda mais, “para os coxos, doentes e aleijados”. Os “príncipes” terão que reavaliar sua postura e pertença, enquanto membros desse corpo. A “plebe” é a Igreja. O Santo Povo de Deus, termo cunhado pela teologia do povo argentina, seguida pelo papa Francisco, é quem redimensiona o papel da Igreja Católica, “dita as regras” da pastoral.
O livro é um “hemograma completo”, que apresenta “as taxas alteradas” que Francisco identifica no mundo e na Igreja Católica. Depois de sete anos de pontificado, ele faz as contas. Há males enraizados que precisam ser exterminados.
Não bastam mais os paliativos. É hora de agir e de transformar, de um tratamento de choque.
Por isso senti o dever, para além do que já foi divulgado nos últimos dias (as referências que ele faz à etnia uigur, o apoio ao movimento Me too e aos protestos anti-racistas desencadeados após a morte George Floyd), de aprofundar outras reflexões que Francisco faz. São colocações importantes, sobretudo para quem tem o interesse de compreender melhor esse pontificado. Dá a impressão que, a qualquer momento, ele nomeará os atores do processo, tamanha é a clareza de seu pronunciamento.
As ‘metralhadas’
Francisco criticou os políticos que chamam o coronavírus de “uma simples gripe” – e, traduzindo para a realidade brasileira, “gripezinha”. Também condenou quem usa o termo “doença estrangeira” e considera as restrições para a contenção da pandemia, impostas por alguns governos, “ações invasivas do Estado”. Diz que esses políticos “vendem essa narrativa para benefício próprio”.
Aproveitou o tema para dar seu parecer a respeito da atuação dos meios de comunicação durante a pandemia. Elogiou os jornalistas que conseguiram humanizar o próprio trabalho, mostrando a realidade das periferias. Por outro lado, acusou alguns meios de comunicação “de atuarem atrelados à cultura da pós-verdade”, por usarem as informações como armas de poder. E, nessa hora, não poupou nem a mídia “de casa”, a católica:
“Infelizmente, esse fenômeno não é estranho para algumas plataformas de comunicação que se dizem católicas e afirmam estar salvando a Igreja de si mesma.
Noticiários que reformulam os fatos para apoiar certas ideologias em prol do ganho financeiro corrompem o jornalismo e destroem o tecido da nossa sociedade”.
Disse que, na lógica fundamentalista, que é o fermento das ditaduras, a estratégia é criar um inimigo em potencial. Ampliou a reflexão falando sobre os migrantes, os quais, segundo ele, têm sido excluídos por causa de ideologias que não condizem com a bandeira pró-vida do cristianismo.
“Por exemplo, uma fantasia de nacional-populismo em países de maioria cristã é defender a ‘civilização cristã’ de supostos inimigos, sejam eles o islã, os judeus, a União Europeia, as Nações Unidas”.
“O coração do cristianismo é o amor de Deus por todos os povos. Rejeitar um migrante em dificuldade, seja ele da religião que for, por medo de diluir a cultura ‘cristã’ é uma deturpação grotesca tanto do cristianismo quanto da cultura”.
Como fez em relação à mídia católica, os “católicos moralistas” e os “rígidos”, como o papa os define, também não escaparam da sua lista de puxões de orelha. Ao citar movimentos e congregações que se desviaram da proposta do Evangelho, na tentativa de “salvar a Igreja de si mesma”, pautada num rigorismo doutrinal, o pontífice foi claríssimo, admitindo que tais posturas ainda repercutem no presente.
“A rigidez é sinal de que o mau espírito está escondendo alguma coisa. Por trás de cada grupo que procura impor sua ideologia à Igreja, achamos a mesma rigidez. Mais cedo ou mais tarde, haverá alguma revelação chocante envolvendo sexo, dinheiro e controle psicológico”.
“Em vez de se lançarem à grande tarefa de evangelizar nosso mundo, em comunhão com o Corpo, ficam aninhados em seu grupos puristas, guardiões da verdade. Para essas pessoas, apartadas pela consciência isolada, nunca faltam razões para ficar na sacada, enquanto a vida real se desenrola embaixo”.
As revelações
Ainda falando sobre a pandemia, elogiou a atuação das mulheres no enfrentamento das crises. Reitera que elas administram melhor que os homens, e que os países que são por elas conduzidos conseguem enfrentar melhor as dificuldades. Explicou, nessa parte, o que o motiva a colocar mulheres em cargos importantes no Vaticano.
“As mulheres que nomeei estão lá devido às suas qualificações e experiências, mas também para influenciar a visão e a mentalidade da burocracia da Igreja”, explicou.
Francisco também revelou que foi orientado a publicar sua segunda encíclica, Laudato Si’, de 2015, que trata de ecologia, antes do Acordo de Paris, firmado em 2016. Consideraram oportuno falar de “uma ecologia integral”, termo que expressa a relação que existe entre preservação ambiental e desenvolvimento integral do ser humano, servisse como uma espécie de “manual de conduta” para os líderes signatários. E o papa topou.
Para quem conhece um pouco de história da Igreja sabe que o papel do pontífice romano, desde os seus primórdios, é atuar como uma espécie de “conselheiro da humanidade”. É por isso que a diplomacia pontifícia é considerada sui generis em todos os aspectos. E Francisco, então, assume isso como missão, faz jus ao cargo.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras