Viver como Jesus viveu incomoda os detentores do poder.
Se tomarmos os parâmetros de alguns religiosos, Jesus seria imoral. Na foto, Bolsonaro durante audiência com presidente da Assembleia de Deus em Santo André.
Curiosamente, uma das maiores dificuldades do cristianismo ao longo de toda a sua história foi seguir os ensinamentos de Jesus. Esse homem, que nunca foi um cristão, mas um judeu como tantos outros na Galileia, trouxe ensinamentos que, pela fé, traziam os reais significados daquilo que estava contido em toda a Escritura de seu tempo, ou seja, aquilo que conhecemos como Antigo Testamento. Tanto isso é verdade que, como mostram as narrativas evangélicas, Jesus não foi uma pessoa tão bem quista pelos religiosos de seu tempo. Não que isso tenha mudado ao longo da história, afinal é muito comum que a classe religiosa de determinado credo seja aquela que menos segue os ensinamentos de seu fundador.
Jesus foi perseguido, questionado, desejaram sua morte, conspiraram contra sua vida até que, finalmente, conseguiram que fosse condenado em um julgamento extremamente duvidoso dentro do rito judaico e entregue para a crucificação como bandido.
Tudo isso mostra o quanto a mensagem de Jesus foi incômoda durante o seu tempo.
Se olharmos para a história do cristianismo, principalmente após a conversão de Constantino e, posteriormente, o édito de Teodósio em 380 da era cristã, que tornava o cristianismo a religião oficial do Império e, consequentemente, uma religião de Estado vemos que essa dificuldade com a pessoa de Jesus se torna ainda maior.
Afinal, como sustentar que a Igreja que nasceu a partir dos ensinamentos de um judeu marginal, que pregava o amor ao próximo, o não acúmulo de riquezas, a divisão de bens, a não hierarquia entre as pessoas, que vivia humildemente, não tendo nem lugar para reclinar a sua cabeça, podia ser o mesmo que queria que uma instituição dominasse toda a terra e condenasse à morte todas as pessoas que não seguissem determinada religião?
Como conciliar a imagem de um Jesus que dependia de mulheres para seu sustento em seu ministério com a pompa e a riqueza que os líderes do cristianismo passaram a ter?
Afinal, não tinha sido esse mesmo Jesus aquele que afirmou que é mais difícil um rico entrar no Reino de Deus do que passar um camelo pelo buraco de uma agulha? Mesmo que ao longo do tempo sempre se tenha tentado alargar o buraco da agulha e diminuir o camelo, os ensinamentos do judeu marginal permaneciam como grande entrave para todo império cristão que nascia.
Da mesma forma, seu ensinamento de que Deus se mostra como um pai amoroso, que derrama sua chuva sobre justos e injustos e, portanto, toda e qualquer meritocracia que garanta o olhar gracioso de Deus se torna sem sentido; bem como seu ensino que afirma que não é pela força e pela violência que o Reino de Deus é estabelecido, mas que tal reino, que vem da parte do próprio Deus, manifesta-se pelas ações amorosas na direção de todas as pessoas se mostraram como grandes incômodos diante de um império cristão que queria conquistar terras para aumentar seus domínios e que, posteriormente, vendia indulgências para garantir melhores condições diante de um Deus que se mostrava constantemente irado contra os humanos.
Em dias atuais, Jesus ainda continua sendo um problema para os religiosos e religiosas de plantão, que querem apelar para uma moralidade que não combina em nada com a de Jesus que, de acordo com os religiosos do seu tempo, foi um péssimo exemplo de moral, alguém com o qual nenhuma mãe ou pai gostaria que seus filhos e filhas andassem.
Nesse cenário, não é de se admirar que aqueles e aquelas que andam como Jesus continuam sendo chamados de hereges, devassos, comunistas, ou qualquer outro termo pejorativo que se queira dizer de maneira mais atualizada. Isso, na verdade, mostra que viver como Jesus quer e lutar para que haja uma sociedade que tenha os valores do Reino de Deus ainda incomoda os poderes religiosos e políticos do mundo contemporâneo. Não podemos, contudo, furtar-nos de viver como Jesus viveu, caso realmente tenhamos sido tocados e transformados pela sua pessoa e mensagem.
*Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em Filosofia e Licenciado em Matemática (UFMG) E-mail: fveliq@gmail.com. Site: www.fabricioveliq.com.br.
Fonte: Dom Total