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Guerra justa não existe : o veredito de Francisco

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O pontífice, amparado no pensamento do catolicismo sobre o assunto, encerra a questão sobre a justificação do belicismo.

 

“Não existe guerra justa: o veredito de Francisco”, em suma a encíclica Fratelli tutti, publicada pelo papa Francisco no último dia 4 de outubro, surpreende a cada capítulo. Além de ser uma síntese do pensamento do pontífice, o documento repropõe assuntos já tratados por alguns papas e pouco ampliados por outros. É o caso da “doutrina da guerra justa”, que define em quais condições uma guerra é moralmente aceitável, segundo os princípios da teologia católica.

Em sua nova mensagem, o pontífice argentino diz que “hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos em outros séculos para falar de uma possível guerra justa”. Dessa forma, Francisco retoma uma questão que foi praticamente “arquivada” pelos seus predecessores após a morte de João XXIII, em 1963.

O conceito, cunhado por Santo Agostinho no século 5, e sustentado posteriormente por outros escritores cristãos, foi alvo de controvérsias em vários períodos da história. As Cruzadas (1095-1492) e outros conflitos travados em nome da religião foram respaldados, em parte, por essa concepção.

Segundo a teoria, a guerra seria o último recurso (extrema ratio), caso as tratativas, que compõem a primeira etapa do processo de resolução das contendas, não gerem resultado. Ela estabelece três critérios para que um conflito seja considerado lícito: deve ser declarado por uma autoridade legítima, iniciado por uma justa causa e conduzido de maneira legítima.

Na Idade Contemporânea, o tema foi amplamente discutido na encíclica Pacem in Terris (1963), de João XXIII, publicada meses antes de sua morte. Na carta, o pontífice italiano salienta, em outras palavras, que a guerra não pode mais ser considerada um instrumento imprescindível para a aplicação da justiça.

O surgimento de armas de destruição em massa, como no caso da bomba atômica, transformam qualquer conflito bélico numa medida desproporcional, segundo a visão desse papa. Lembrando que ele escreve esse documento após a crise dos mísseis de Cuba (1962), que quase provocou um conflito nuclear sem precedentes, sem contar que a Guerra do Vietnã ainda estava em curso (1955-1975).

O papa Bento XV, o pontífice que governou a Igreja entre 1914 e 1922, considerou a Primeira Guerra Mundial “uma tragédia inútil” e uma “grande carnificina”. Com essas definições, que atraíram a ira das grandes potências beligerantes da época, ele preparou o terreno para que o magistério contemporâneo repensasse a tese agostianiana sobre a guerra justa.

Francisco, por sua vez, recorrendo ao legado de seus predecessores, não só afirma que já “estamos em uma terceira guerra mundial em pedaços”, mas que “a guerra deixa o mundo pior que encontrou” e acrescenta que ela “é o fracasso da política e da humanidade”.

O papa argentino coroa a reflexão pontifícia, maturada no decorrer de um século, que conduz os cristãos à renuncia desse “espírito bélico”. Ele mostra, além disso, que provocar a guerra ou apoiá-la é um ato de incoerência para quem professa a religião, uma vez que fere o princípio da promoção da dignidade humana, que o catolicismo diz salvaguardar.

“Nas últimas décadas, todas as guerras pretenderam ter uma justificação. O Catecismo da Igreja Católica fala da possibilidade duma legítima defesa por meio da força militar, o que supõe demonstrar a existência de algumas condições rigorosas de legitimidade moral. Mas cai-se facilmente numa interpretação demasiado larga deste possível direito. Assim, pretende-se indevidamente justificar inclusive ataques preventivos ou ações bélicas que acarretam males e desordens mais graves do que o mal a eliminar. A questão é que, a partir do desenvolvimento das armas nucleares, químicas e biológicas e das enormes e crescentes possibilidades que oferecem as novas tecnologias, conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge muitos civis inocentes”, disse Francisco, na Fratelli tutti.

Fonte: *Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras. /DomTotal

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