O papa tem salário, patrimônio ou pode beneficiar parentes e amigos através de sua função?
Papa reza por homem visivelmente emocionado, durante audiência geral de quarta-feira, no Vaticano. Muitas vezes, aquela imagem do papa renascentista, que desfruta uma vida luxuosa e sem escrúpulos, segue firme no imaginário popular. Na cabeça das pessoas, o pontífice continua sendo aquele velho monarca que vive em função do acúmulo de riquezas. Porém, os tempos mudaram. Ainda bem.
É certo que a reputação do catolicismo, em algumas fases de sua história, não foi das melhores.
E, na atualidade, alguns cardeais, bispos e padres continuam apegados àquele “espírito de corte” ao qual o papa atual se opõe de maneira exemplar.
Mesmo assim, não podemos olhar para a trajetória do catolicismo pelas lentes de um anacronismo sem fim. Quando estudamos a disciplina histórica, é justamente esse tipo de tendência, em relação a qualquer tema, que precisamos evitar.
Do contrário, corre-se o risco de conceber uma “história mitológica”, focada numa mera sucessão de eventos enquadrados pelas modalidades do presente.
O salário do papa.
Deixando de lado os métodos de interpretação, a pergunta que não quer calar: Afinal, o papa recebe salário? – A resposta é não.
Em vez disso, padres diocesanos, bispos e cardeais recebem uma contribuição pelo serviço prestado à instituição, que na linguagem eclesial é chamada de “côngrua”.
O pontífice romano é o único chefe de estado que não recebe nenhum tipo de remuneração.
Ele não pode ter jatinhos, carros particulares nem prédios. Suas despesas e necessidades são pagas pelo Vaticano.
Além disso, é proibido acumular patrimônios em seu nome após a eleição. Cartões de crédito? Nem pensar.
Um dos documentos que atestam essa práxis contemporânea é o testamento de João Paulo II.
Em um trecho da carta, ele diz: “Não deixo nenhuma propriedade em meu nome. Somente as coisas que usei no meu quotidiano. E peço que essas coisas sejam distribuídas como vocês acharem melhor”.
O papa Paulo VI, que governou a Igreja entre 1963 e 1978, declarou, em seu testamento, “que morreria pobre”, reconhecendo a Santa Sé como “sua herdeira universal”.
Conservava imóveis de herança familiar, que eram administrados por seus parentes.
No texto, pede que seus dois irmãos fiquem com uma parte e outra parte seja destinada “às boas obras e às pessoas necessitadas”. Pediu que lhe construíssem uma tumba modesta, sem decorações ou monumentos.
E exigiu “um funeral “simples e piedoso”, desprovido de todas “as pompas pontifícias”.
No caso do papa Francisco, é ainda mais evidente esse desapego.
Por ser religioso jesuíta, não possuía nenhum tipo de propriedade antes de ser eleito papa. Sem contar que o seu pontificado, como vemos, é pautado pelo desprendimento.
Condena os padres que investem o dinheiro em carros luxuosos e faz um apelo para que esses clérigos, principalmente, adotem um estilo de vida modesto.
Essa postura já é exigida pelo próprio Código de Direito Canônico – a lei da Igreja –, mais precisamente no artigo (canôn) 282:
“Os clérigos cultivem a simplicidade de vida e abstenham-se de tudo o que tenha ressaibos de vaidade”.
Escolheu viver numa casa rodeada de funcionários do Vaticano, renunciando ao apartamento pontifício, onde disse que se sentiria “muito sozinho”, caso o elegesse como sua moradia.
Ordenou que o carro utilizado para deslocamentos dentro da cidade de Roma fosse trocado por um mais simples. E adotou, em 2013, um Ford Focus azul.
De acordo com o professor Rudy Assunção, especialista no pensamento de Bento XVI, o que consta até agora é que o papa emérito tenha somente uma propriedade, que foi adquirida por ele e pelos irmãos em 1969, quando ele ainda era professor.
É uma casa que fica localizada na cidade de Regensburg, na Alemanha, e é nela que ele planejava viver sua aposentadoria e o resto de seus dias.
As doações do papa.
Existe um fundo que fica à disposição do papa, caso ele precise fazer uma doação em seu nome.
Se chama Óbulo de São Pedro, e é um sistema de arrecadação de dinheiro destinado à prática da caridade.
Quando lemos uma notícia a respeito de uma contribuição feita diretamente pelo pontífice em meio a crises humanitárias, é porque ele fez uso desse recurso.
Todos os anos, no dia 29 de junho, dia de São Pedro, o dinheiro recolhido pelas paróquias de todo o mundo é repassado para essa entidade. Durante a pandemia, o dinheiro usado na compra dos respiradores que foram enviados ao Brasil foi retirado desse montante.
O papado e o acúmulo de riquezas.
A Igreja Católica foi governada por um pescador, monges e pontífices “antissistema” que, por causa da sua coerência de vida, foram reconhecidos santos pela Igreja Católica.
Mas a instituição também foi conduzida por homens gananciosos, cujo programa de governo visava tão somente a expansão dos territórios pontifícios e o enriquecimento de suas próprias próprias famílias.
Sem contar os outros desvios morais que eram cometidos por esses homens, sem qualquer peso na consciência.
Não por acaso, o termo nepotismo surge, justamente, em âmbito católico.
O nome está associado à prática de dar o título de cardeal a alguns parentes do papa, difundida entre séculos 14 e 17. O “cardinale-nipote” – do italiano, cardeal-sobrinho –, era nomeado para assumir cargos de confiança na cúria romana.
Em determinado período, ele chegou a atuar como uma espécie de secretário de Estado, e era um braço direito do sumo pontífice.
O nepotismo foi abolido pela Igreja em 1692, através da bula Romanum decet pontificem, do papa Inocêncio XII.
*Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.
Fonte: Domtotal