O bispo catalão Dom Pedro Casaldáliga em sua residência na cidade de São Felix do Araguaia (MT), em outubro de 2006.
Estive com Pedro Casaldáliga pessoalmente em duas ocasiões. Na primeira, eu era estudante de graduação em teologia na PUC-Rio e um colega, estudante jesuíta, me disse: dom Pedro Casaldáliga está na PUC.
Corremos para vê-lo no auditório do RDC. A impressão foi marca indelével que até hoje me acompanha.
A pequena estatura e o corpo magro ocupavam espaço estreito no grande auditório. Quando abriu a boca, aquele homem de compleição frágil agigantou-se e incendiou a sala inteira com sua voz de trovão e sua língua de profeta. Saí ungida e comecei a buscar avidamente seus escritos e poesias para conhecê-lo melhor.
Uma segunda vez encontrei-o em Itaici, em congresso de teologia promovido pelos Passionistas sobre a Cruz no mundo de hoje.
Pedro viera de ônibus, recusando a passagem de avião oferecida pelos organizadores. O moderador da mesa o apresentou relatando esse fato. Diante dos aplausos que se seguiram, o bispo fez um gesto para que aquilo cessasse. E disse: “Isso não tem nada de extraordinário. Deveria ser normal”.
Sua oratória de profeta calou fundo em um auditório sedento de verdade e de pathos teológico.
Depois disso não mais o vi em pessoa, mas seguia-o sempre: quando foi a Roma para audiência com o então cardeal Ratzinger; quando a mídia filmava seus depoimentos, declarações e testemunhos; quando foi à Nicarágua acompanhar Miguel d’Escoto em sua greve de fome.
Impressionava-me a radicalidade de sua vida impregnada de Evangelho, seu amor profundo pelo Deus de Jesus, sua lucidez diante de uma realidade injusta e oprimida que ele tentava denunciar e transformar.
Sua poesia sempre foi para mim profundamente inspiradora. Em sua pessoa era visível a síntese feliz e indissolúvel entre mística e política que sempre busquei em meu itinerário teológico e hoje ainda me alimenta em meu trabalho. Porém, um de seus poemas me acompanhou especialmente.
Trata-se de Deus é Deus, que uso frequentemente no início de cada curso sobre o Deus da Revelação que venho ensinando há quase quarenta anos.
Ali o poeta e profeta busca dizer em versos quem é o Deus que inspira e move sua vida. E começa por seu próprio ofício de poeta: “Eu faço versos e creio em Deus; meus versos andam cheios de Deus como pulmões estão cheios de ar vivo”.
Mas outros poetas, que Pedro humildemente reconhece fazerem versos melhores que os seus, como Drummond, não creem em Deus. Deus não é somente a beleza.
Assim também o Che (Ernesto Che Guevara), figura muito admirada pelo bispo, deu a vida pelo povo, mas não via a Deus na montanha. Deus não é apenas a Justiça. E Pedro afirma: “Não poderia conviver com os pobres se não topasse com Deus em seus farrapos, se não estivesse Deus como uma brasa queimando meu egoísmo lentamente”.
O poeta se refere, em seguida, aos cantores que içam suas bandeiras e soltam a voz mas não referem seu canto a Deus. “Eu só sei cantar dando seu nome. Deus não é somente a alegria”.
Os sábios pesquisam e “caminham imperturbavelmente contra o rosto de Deus fazendo história, desvelando mistérios e perguntas”. Pedro reconhece humildemente: “Eu não seria capaz desses caminhos se não estivesse Deus como uma aurora rompendo minha névoa e meu cansaço. Deus não é somente a verdade”.
Nesse poema, o bispo que durante sua vida teve um chapéu de vaqueiro como mitra, o anel de tucum e um calo nas mãos como anel episcopal e um bastão tosco como báculo, exprime quem não é seu Deus.
Não é nenhuma das mediações que lhe permitem experimentá-lo: a beleza, a justiça, a verdade, a alegria. O Deus que anima e move o bispo catalão, que dedicou boa parte de sua vida ao Brasil, se revela como Mistério Santo que a tudo dá sentido.
E Pedro termina o poema proclamando quem é seu Deus: “Beleza sem ocaso, Verdade sem argumentos, Justiça sem retornos, Amor inesperado, Deus é Deus simplesmente!”.
Neste momento, a Igreja do Brasil chora a partida de seu profeta e poeta, do pastor que confirmava esperanças e acendia vocações com o fogo de suas palavras e de sua vida. Enterrado ao lado dos pobres, em um obscuro cemitério da sua querida diocese São Félix do Araguaia, Pedro não será mais visto, ouvido, tocado por nós. Mas suas palavras e sobretudo seu testemunho permanecem conosco para sempre.
Em 1980, quando assassinaram Monsenhor Romero, em El Salvador, Ignacio Ellacuria dele dizia: “Com Monsenhor Romero, Deus passou por El Salvador”. Agora, nós, em lágrimas mas cheios de gratidão a Pedro e Àquele que o criou, o chamou e o enviou, dizemos: “Com Pedro Casaldáliga, Deus passou pelo Brasil”. Que essa certeza nos anime durante os tenebrosos momentos que o país vive agora. Amém e obrigada por tudo Pedro.
Maria Clara Bingemer
é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros, entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e os jesuítas, de 2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.
Fonte: Domtotal
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