Morrer em tempos de Covid-19
Quem diz com indiferença que “somente algumas pessoas irão morrer” é banalizou a vida, transformando-a em objeto descartável
Funcionária usa equipamento de proteção no Hospital Poliambulanza de Bréscia, na Itália, em 17 de março de 2020
Todos iremos morrer.
E essa é a única certeza que carregamos ao longo da vida.
A morte está inscrita em nosso horizonte tal como o sol nascendo todas as manhãs inaugurando um novo dia para os vivos.
E o morrer é uma condição de tudo o que vive e respira, portanto, não é somente propriedade da nossa espécie frágil e finita.
Há períodos na história da humanidade que essa condição da existência nos interpela mais profundamente.
Cotidianamente, somos confrontados pela morte dos outros.
Morrem amigos, familiares, amores, vizinhos, conhecidos ou desconhecidos, mas é sempre eles que morrem.
Assim, a morte acaba acontecendo como uma face negativa: o nada.
Nesse caso, o nada da alteridade.
Raramente paramos para pensar no nosso próprio morrer. O assunto intriga e assusta, mas não o necessário para nos prepararmos para a morte, a nossa ou a do outro. Vivemos os dias sem saber o instante em que seremos nada além de memória ou esquecimento.
É alarmante o número de pessoas que já perderam suas vidas no mundo por causa da pandemia de Covid-19.
A universidade americana Johns Hopkins contabiliza mais de 36 mil mortes até às 20h do dia 30 de março do corrente.
O número dos infectados pelo novo vírus já se aproxima da casa dos milhões.
São números assustadores para um período de tempo tão curto. As cenas, então, são de cortar o coração e superam, muitas vezes, a boa razão.
Caixões lacrados trafegam pelas cidades em caminhões rumo a crematórios ou ocupam o chão de galpões ou templos religiosos esperando um destino.
Caminhões refrigerados são transformados em necrotérios e estacionados em pátios a espera de mais vítimas.
Cenas reais que já seriam assustadoras demais em filmes de ficção científica.
Diante desse cenário, é impossível se dizer sensível a essa situação e não se afetar minimamente pelas perdas sofridas por tantas pessoas.
O vírus não faz acepção de pessoas. Mata do novo ao velho e não pergunta se já deixamos a casa limpa, o trabalho da faculdade feito, o beijo dado com amor.
Pois, ele mata indistintamente.
E quem morre não é apenas um número a mais numa escala global.
Ele mata relações e sonhos de futuro. E isso é o mais perverso.
São vidas interrompidas de maneira arbitrária. Não deveria ser assim.
Também não deveríamos ouvir afirmações do tipo: “morrem os mais idosos ou os já doentes”;
“morrerá apenas um por cento da população mundial”; “somente algumas pessoas irão morrer”.
Quem faz esse tipo de afirmação não banalizou o mal. Banalizou a vida. Tornou-a um objeto descartável.
Esqueceu-se da humanidade e animalizou-se. Não deveria ser assim.
Nenhuma estatística pode consolar a dor da perda de uma pessoa querida nem enxugar as lágrimas que jorram na face daqueles que não podem nem sepultar seus mortos.
O positivismo numérico só tem sentido para os indiferentes ao sofrimento dos outros e para os que não passaram pelas recorrentes situações de morte amplamente divulgadas nos últimos dias.
Assim, a fé cristã ensina que o morrer é um acontecimento pessoal.
Trata-se de um fechar e abrir de olhos que nos coloca numa relação comunional com Deus.
Mas não é o fato de sabermos que morreremos em radical desprendimento que devemos nos mostrar insensíveis diante de tantas mortes.
Diz-se num dos mais breves versículos de toda a Bíblia: “E Jesus chorou” (Jo 11,35).
Diante do sofrimento de Maria e Marta pela perda do irmão Lázaro e da comoção de todos os vizinhos, Jesus se “estremeceu interiormente, ficou profundamente comovido” (Jo 11,33).
A morte do amigo o afeta. A dor dos que choram o morto o afeta.
E já não é possível ficar indiferente.
Se ainda não somos capazes de esperar pela nossa própria morte, aprendamos com Jesus a superar a racionalidade que nos impede de compadecer com o morrer de muitos em nossos dias.
Fonte: Dom Total